
Uma equipe internacional de cientistas lança o Catálogo CoSEE-Cat, um banco de dados abrangente de eventos de elétrons energéticos solares, usando observações inovadoras da missão Solar Orbiter. As primeiras análises estatísticas já oferecem insights cruciais sobre a aceleração e propagação dessas partículas fundamentais para a heliofísica.
Introdução: O Sol, Nosso Acelerador de Partículas Cósmico
O Sol, a estrela que nos dá vida, é também o mais poderoso acelerador de partículas do nosso sistema solar. Constantemente, ele ejeta íons e elétrons em direção ao espaço interplanetário, detectados aqui na Terra (e em espaçonaves) como Partículas Energéticas Solares, ou SEPs. Dentre essas, os elétrons energéticos solares (SEEs) são de particular interesse, pois podem ser rastreados de volta a fenômenos solares violentos, como flares e ejeções de massa coronal (CMEs), observados remotamente em diversas bandas do espectro eletromagnético, de ondas de rádio a raios-X. Compreender a aceleração dessas partículas no Sol e sua jornada através do espaço interplanetário é um dos pilares da heliofísica, a ciência que estuda a influência do Sol no espaço e nos planetas.
A missão Solar Orbiter, uma colaboração entre a Agência Espacial Europeia (ESA) e a NASA, é uma ferramenta extraordinária para essa investigação. Equipada com uma vasta gama de detectores in situ (que medem partículas e campos no local) e de sensoriamento remoto (que observam o Sol a distância), a espaçonave oferece uma oportunidade sem precedentes para estudar os SEEs e sua origem solar a partir do heliossfera interna, a região mais próxima do Sol. É nesse contexto que surge o CoSEE-Cat, o Catálogo Abrangente de Eventos de Elétrons Energéticos Solares, um projeto colaborativo de oito equipes de instrumentos da Solar Orbiter.
O Nascimento de uma Ferramenta Inovadora: O Catálogo CoSEE-Cat
O CoSEE-Cat (Comprehensive Solar Energetic Electron event Catalogue) é o resultado de um esforço conjunto de cientistas das equipes dos instrumentos EPD (Energetic Particle Detector), STIX (Spectrometer/Telescope for Imaging X-rays), EUI (Extreme Ultraviolet Imager), RPW (Radio and Plasma Waves), Metis (Coronógrafo Multi-canal), SoloHI (Solar Orbiter Heliospheric Imager), SWA (Solar Wind Analyzer) e MAG (Magnetometer). O objetivo principal é registrar todos os eventos de SEE medidos in situ pela Solar Orbiter e, em seguida, identificar e caracterizar suas contrapartes solares potenciais.
A primeira versão do catálogo, que abrange o período de novembro de 2020 até o final de dezembro de 2022, já inclui impressionantes 303 eventos de SEE. Este catálogo não é estático; ele será atualizado regularmente à medida que a missão avança, tornando-se uma ferramenta viva e essencial para a comunidade científica. Nele, são compilados parâmetros-chave dos SEEs, como tempos de liberação solar (SRTs), composições iônicas, anisotropias e intensidades de pico, além de informações detalhadas sobre os flares, CMEs e explosões de rádio tipo III associados.
A Arquitetura da Descoberta: Os Instrumentos do Solar Orbiter
Para construir um catálogo tão detalhado, o Solar Orbiter conta com um arsenal tecnológico impressionante. Cada instrumento desempenha um papel vital na coleta de dados, tanto in situ quanto de sensoriamento remoto, que são então combinados para oferecer uma visão holística dos eventos de SEE.
- EPD (Energetic Particle Detector): Este conjunto de instrumentos é o coração da detecção de SEEs. Ele identifica e caracteriza os eventos, inferindo o tempo de liberação dos elétrons no Sol e determinando a composição dos íons energéticos relacionados. As unidades STEP (2–80 keV), EPT (25–475 keV) e HET (0.3–30 MeV) cobrem uma vasta gama de energias eletrônicas, enquanto a unidade SIS (Suprathermal Ion Spectrograph) mede a composição de íons H-Fe na faixa de ~0.1-10 MeV por nucleão.
- STIX (Spectrometer/Telescope for Imaging X-rays): Essencial para o estudo de flares solares, o STIX fornece espectroscopia de imagem na faixa de raios-X de 4 a 150 keV. Ele restringe tanto o plasma quente quanto os elétrons acelerados em flares, fornecendo informações quantitativas sobre o tempo, localização, intensidade e espectros dos elétrons energéticos.
- EUI (Extreme Ultraviolet Imager): O EUI adiciona contexto crucial sobre flares associados e fenômenos eruptivos. Com o Full Sun Imager (FSI) observando em 174 e 304 Å, e os High Resolution Imagers (HRIs) em Lyman-alpha (1216 Å) e 174 Å, ele pode traçar material eruptivo através da coroa solar.
- RPW (Radio and Plasma Waves): Este instrumento é fundamental para identificar e caracterizar explosões de rádio tipo III, que funcionam como um elo entre os eventos de partículas in situ detectados pela Solar Orbiter e suas fontes solares. As medições de campos elétricos cobrem a faixa de frequência de 4 kHz a 16 MHz.
- Metis (Coronagraph): Um coronógrafo multi-canal que observa a coroa solar em ultravioleta (Ly-α) e luz visível. Seu campo de visão em anel se estende de 1.6° a 2.9° de raio, permitindo a observação de CMEs (Ejeções de Massa Coronal).
- SoloHI (Solar Orbiter Heliospheric Imager): Fornece imagens de luz branca da heliosfera interna, com um amplo campo de visão (6–60 R☉) que complementa as observações de Metis, rastreando CMEs mais longe do Sol.
- SWA (Solar Wind Analyzer) e MAG (Magnetometer): Estes instrumentos são usados para caracterizar as condições do meio interplanetário (IP) através do qual os elétrons energéticos se propagam. O SWA/PAS (Proton and Alphas Sensor) fornece parâmetros do vento solar (densidade, temperatura, velocidade), enquanto o MAG mede o vetor do campo magnético interplanetário (IMF).

A Classificação dos Eventos: Impulsivos vs. Graduais
Desde 1986, os eventos de partículas energéticas solares (SEPs) são tradicionalmente divididos em duas grandes classes: graduais e impulsivos. Embora os termos tenham surgido da evolução temporal dos flares de raios-X suaves (SXR), hoje são usados principalmente para indicar a composição elementar dos SEPs.
- Eventos Impulsivos: São ricos em elétrons e associados a flares de raios-X pequenos, explosões de rádio tipo III e abundâncias iônicas altamente enriquecidas em 3He. A origem desses eventos está fortemente ligada a flares, com elétrons energéticos precipitantes inferidos de observações de raios-X duros (HXR) e elétrons escapando rastreados por emissões de rádio tipo III.
- Eventos Graduais: Associados a grandes flares de raios-X e choques impulsionados por CMEs. Podem ser medidos em amplas faixas heliolongitudinais em relação à erupção solar de origem.
O CoSEE-Cat confirma essa distinção. Com base no tempo e na conectividade magnética de suas contrapartes solares, o catálogo mostra uma separação muito clara entre eventos com composição iônica impulsiva e aqueles com composição gradual. Os resultados apoiam a origem relacionada a flares para eventos impulsivos e a associação de eventos graduais com estruturas estendidas, como choques impulsionados por CMEs ou cordas de fluxo eruptivas.
A maioria dos eventos de SEE no catálogo (76%) apresenta uma composição impulsiva, enquanto os eventos graduais representam 19%, e apenas cinco eventos são de composição intermediária. Essa fração de eventos impulsivos é quase idêntica aos resultados de um estudo anterior da Wind/3DP (Wang et al., 2012).
Anisotropia e Tempos de Subida: Pistas sobre a Propagação
A anisotropia dos elétrons, ou seja, a preferência de sua direção de movimento, oferece pistas valiosas sobre o quão fortemente eles foram espalhados durante sua propagação. No CoSEE-Cat, a maioria dos eventos onde a anisotropia pôde ser medida (75% dos eventos) revelou anisotropias médias ou grandes, indicando que os elétrons não sofreram processos de espalhamento intensos durante sua jornada. Isso aumenta a confiança na capacidade de associar eventos solares aos SEEs com base em seu tempo de liberação. Eventos graduais, por outro lado, tendem a ter níveis de anisotropia mais baixos.
Os tempos de subida dos SEEs, definidos como a diferença entre o tempo de pico de intensidade e o tempo de início, também são reveladores. Eventos impulsivos mostram tempos de subida significativamente mais curtos, com uma mediana de 7 minutos, enquanto eventos graduais apresentam uma mediana de 19 minutos. Eventos graduais também exibem um número maior de “outliers” com tempos de subida muito longos, chegando a 20 horas. Além disso, eventos com baixa anisotropia são caracterizados por tempos de subida consideravelmente mais longos (mediana de 125 minutos), sugerindo que a difusão e/ou aceleração contínua de partículas desempenham um papel importante nesses casos. Isso é consistente com eventos magneticamente mal conectados, onde podem ocorrer injeções graduais de partículas, espalhamento aprimorado e potencialmente difusão perpendicular.
As intensidades de pico dos SEEs, medidas em 44 keV, variam em quatro ordens de magnitude. Curiosamente, as distribuições para eventos impulsivos e graduais não diferem significativamente neste conjunto de dados, o que contradiz a suposição geral de que eventos graduais são caracterizados por intensidades mais altas. Os autores sugerem que isso pode ser devido à ausência de grandes eventos graduais registrados durante o período de atividade solar moderada de 2020 a 2022. Contudo, SEEs altamente anisotrópicos e eventos bem conectados magneticamente tendem a ter intensidades de pico mais elevadas.
A Conexão Solar: Flares, Rádio e CMEs
A alta associação dos SEEs com flares de raios-X é notável: mais de 88% dos eventos analisados foram ligados a um flare STIX. A fração de flares associados a SEEs aumenta claramente com a importância do flare GOES, variando de 0,8% para flares de classe B a 29% para flares de classe X. Isso mostra que flares mais intensos têm uma probabilidade muito maior de gerar elétrons energéticos detectáveis no espaço interplanetário.
Além dos flares, os eventos de SEE estão altamente associados a explosões de rádio tipo III. Em 30% dos SEEs, uma única explosão tipo III foi detectada, e em 48% houve múltiplas explosões. Apenas 13% dos eventos não mostraram associação com explosões tipo III, mas este número é considerado um limite superior, pois dados de outras espaçonaves podem revelar associações em futuros estudos mais sistemáticos. Isso reforça o papel das explosões tipo III como uma assinatura direta da injeção de elétrons no espaço interplanetário.
A associação com Ejeções de Massa Coronal (CMEs), no entanto, é menos frequente. Metis, o coronógrafo do Solar Orbiter, observou CMEs em 21% de todos os eventos de SEE (28% quando Metis estava observando). É mais provável que eventos graduais estejam associados a CMEs (29% vs 19% para impulsivos). As CMEs associadas a SEEs são, em geral, mais largas e com características de “halo” ou “halo parcial”, o que sugere que estão se propagando em direção à Solar Orbiter. A SoloHI, outro imageador de CMEs, detectou apenas oito CMEs associadas, devido ao seu campo de visão específico que aponta para o leste do Sol, perdendo a maioria dos eventos direcionados para o oeste ou diretamente para a espaçonave.

A Teia Cósmica: Conectividade Magnética e o Meio Interplanetário
Um dos avanços mais significativos do CoSEE-Cat é a capacidade de relacionar a localização das fontes dos SEEs no Sol com a conectividade magnética do Solar Orbiter. O Sol e o ambiente interplanetário são permeados por linhas de campo magnético que servem como “autoestradas” para as partículas energéticas. O Ferramenta de Conectividade Magnética (Magnetic Connectivity Tool), utilizando modelos de campo magnético coronal e heliosférico, estima a posição da fonte no Sol à qual a espaçonave está magneticamente conectada.
Para eventos impulsivos, a localização dos flares STIX está fortemente correlacionada com os pontos de apoio das linhas de campo magnético conectadas previstas, especialmente no hemisfério ocidental. Isso sugere que os eventos impulsivos são lançados de regiões localizadas, como flares ou eventos eruptivos de pequena escala, que estão magneticamente conectados ao espaço interplanetário. As diferenças de latitude e longitude entre a fonte STIX e o ponto de apoio de conectividade são geralmente inferiores a 20°, o que é consistente com a injeção de elétrons em um cone com uma extensão angular média de 30°.
Em contraste, os eventos graduais mostram uma distribuição mais plana e menos correlacionada com as linhas de campo magnético conectadas, o que implica que a região de aceleração é mais estendida ou que a injeção ocorre em conexão com grandes estruturas magnéticas, como choques de CMEs.
As condições do meio interplanetário (IP) também desempenham um papel crucial. O CoSEE-Cat categoriza essas condições, como a presença de CMEs interplanetárias (ICMEs), regiões de interação de fluxo (SIRs), choques IP ou a folha de corrente heliosférica (HCS), que podem influenciar a propagação dos SEEs. Aproximadamente 50% dos eventos de SEE ocorrem no vento solar ambiente, enquanto os restantes estão associados a várias estruturas de grande escala do vento solar.
Os comprimentos de caminho efetivos (path lengths) dos elétrons, inferidos por análises de dispersão de velocidade (VDA), variam de 0,3 a 3,4 UA. A maioria deles não se desvia muito do comprimento nominal da espiral de Parker (73% dentro de ±20%). No entanto, eventos observados no vento solar ambiente mostram uma concordância muito maior com a espiral de Parker nominal do que aqueles associados a estruturas interplanetárias, sugerindo que essas estruturas modificam o transporte dos SEEs. Existem também “outliers” com comprimentos de caminho muito longos (mais de duas vezes a espiral de Parker nominal), que podem ser explicados pela propagação das partículas dentro de cordas de fluxo magnético em ICMEs, onde as condições de baixa turbulência podem levar a um menor espalhamento e, consequentemente, a caminhos mais longos.
O Mistério dos Atrasos: Injeção Atrasada ou Efeitos de Transporte?
Uma das questões mais duradouras sobre os SEEs é a natureza dos atrasos observados nos tempos de liberação solar (SRTs) em relação às observações de sensoriamento remoto de elétrons energéticos no Sol, como os picos de HXR do STIX e o início das explosões de rádio tipo III do RPW. Seriam esses atrasos devidos a uma injeção realmente atrasada no Sol, ou seriam apenas aparentes, causados por efeitos de transporte no meio interplanetário?
O CoSEE-Cat aborda essa questão investigando a dependência da diferença do tempo de liberação com a distância heliocêntrica. As análises revelam que a maioria dos eventos mostra diferenças de tempo entre -10 minutos (injeção antes do pico principal de HXR) e 40 minutos, com uma mediana de 6,4 minutos para as diferenças de SRT TSA (Time Shift Analysis) em relação ao pico principal de HXR. Eventos impulsivos têm uma distribuição mais estreita, com uma mediana de 5,4 minutos, enquanto eventos graduais apresentam uma distribuição mais plana, com uma mediana de 14,4 minutos e outliers que chegam a 13 horas. Esses atrasos extremos em eventos graduais são consistentes com SEEs acelerados em um choque impulsionado por uma CME, onde a Solar Orbiter estava mal conectada.
Para os eventos impulsivos, a análise das diferenças de SRT VDA (Velocity Dispersion Analysis) em relação aos picos de HXR e aos inícios das explosões tipo III mostra uma fraca, mas significativa, correlação com a distância heliocêntrica. Há uma tendência de os atrasos de SRT aumentarem de cerca de zero a 0,3 UA para aproximadamente 10 minutos a 1 UA. Este achado é qualitativamente consistente com estudos recentes de outras missões, como a Parker Solar Probe.
Crucialmente, quando os eventos impulsivos são filtrados por condições de vento solar ambiente (sem estruturas IP), a correlação entre a diferença de SRT e a distância heliocêntrica se torna significativamente mais forte. A inclinação desse aumento é de cerca de 10 minutos por UA, o que sugere uma diferença de tempo zero perto do Sol e um atraso de 10 minutos a 1 UA. Isso demonstra que os efeitos de transporte que se acumulam com a distância são, pelo menos parcialmente, responsáveis pelos atrasos de SRT observados. Além disso, a tendência é mais clara para eventos que estão magneticamente mal conectados à Solar Orbiter, o que sugere que os atrasos podem ser causados, em parte, pelo tempo que os SEEs levam para se difundir através das linhas de campo magnético para alcançar a espaçonave.
Implicações e Próximos Passos: O Futuro da Heliofísica
As primeiras análises do CoSEE-Cat reforçam e detalham as características distintas dos eventos de SEE impulsivos e graduais. Eventos impulsivos, ligados a flares e fenômenos eruptivos de pequena escala como jatos, mostram tempos de subida mais curtos, maior anisotropia, e suas fontes no Sol estão magneticamente conectadas a regiões localizadas. Em contraste, eventos graduais, mais plausivelmente acelerados em choques impulsionados por CMEs, exibem atrasos de SRT mais substanciais, menor anisotropia e suas fontes parecem ser regiões de aceleração mais estendidas ou injetadas em grandes estruturas magnéticas.
A descoberta da dependência radial dos atrasos de SRT para eventos impulsivos, especialmente em condições de vento solar calmo, é um passo crucial para desvendar o mistério dos atrasos na injeção de elétrons. Isso destaca a forte influência da estrutura da heliosfera interna na propagação dos elétrons.
O CoSEE-Cat é mais do que um banco de dados; é um ponto de partida ideal para futuras investigações. Os próximos passos incluem:
- Análise espectral: Comparar os parâmetros espectrais dos SEEs e dos elétrons de flares em função da distância heliocêntrica.
- Cinemática das CMEs: Estudos mais detalhados da cinemática das CMEs associadas usando dados do EUI, Metis, SoloHI e observações de múltiplas espaçonaves.
- Explosões de rádio tipo II: Uma busca mais sistemática por explosões de rádio tipo II (indicativas de ondas de choque) em dados terrestres e espaciais para restringir choques coronais e interplanetários.
- Observações multi-espaçonave: Utilizar o catálogo para estudos de SEEs com observações in situ de múltiplas espaçonaves, permitindo investigar a extensão angular e a evolução radial dos feixes de elétrons energéticos.
Com o CoSEE-Cat, a comunidade científica tem em mãos uma ferramenta sem precedentes para aprofundar nossa compreensão de como o Sol acelera e transporta partículas energéticas, um conhecimento fundamental para proteger nossos ativos tecnológicos no espaço e, eventualmente, para missões tripuladas a Marte e além. É um testemunho do poder da colaboração internacional e da tecnologia de ponta em nossa busca incessante por decifrar os segredos do cosmos.




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