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11 de dezembro de 2025

Índia Rumo à Soberania em Semicondutores: Uma Nova Era de Ambição Tecnológica

Com investimentos massivos, parcerias estratégicas e uma visão de futuro, a Índia acelera sua jornada para se tornar uma potência global na fabricação de chips, remodelando o cenário tecnológico mundial.

Introdução: A Ascensão da Índia no Cenário Global de Semicondutores

A Índia, uma nação tradicionalmente celebrada por sua proeza em software e serviços de tecnologia da informação, está agora executando uma ambiciosa e estratégica pivô em direção ao hardware, com o objetivo de se estabelecer como um ator central na indústria global de semicondutores. Esta não é uma mera incursão, mas uma campanha nacional multifacetada, impulsionada pela Missão de Semicondutores da Índia (ISM), um programa governamental robusto, e validada por investimentos estratégicos de titãs da indústria como a americana Micron Technology e o conglomerado indiano Tata Group. A decisão de entrar neste mercado de capital intensivo e alta tecnologia é uma resposta calculada às crescentes fragilidades da cadeia de suprimentos global. A pandemia de COVID-19 e as crescentes tensões geopolíticas expuseram a perigosa dependência mundial de um pequeno número de nações, principalmente Taiwan e Coreia do Sul, para a produção dos chips que alimentam tudo, desde smartphones a sistemas de defesa. A Índia, com sua vasta reserva de talentos em engenharia, um mercado interno de mais de um bilhão de consumidores e um governo determinado, está posicionada de forma única para transformar esta crise global em uma oportunidade estratégica sem precedentes. O país não busca apenas a autossuficiência, mas aspira a se tornar um fornecedor confiável e resiliente para o mundo, redefinindo o equilíbrio de poder na era digital.

O Coração da Estratégia: A Missão de Semicondutores da Índia (ISM)

No cerne desta transformação está a Missão de Semicondutores da Índia (ISM), lançada em dezembro de 2021 com um impressionante orçamento inicial de ₹ 76.000 crore (aproximadamente US$ 10 bilhões). A ISM não é apenas um fundo de incentivo; é uma agência nodal abrangente, projetada para catalisar a criação de um ecossistema de semicondutores de ponta a ponta. A missão é dividida em vários esquemas direcionados, cada um projetado para atrair diferentes tipos de investimentos e construir diferentes partes da complexa cadeia de valor dos semicondutores.

O principal deles é o Esquema para o Estabelecimento de Fabs de Semicondutores, que oferece suporte fiscal de até 50% do custo do projeto para empresas que se disponham a construir fábricas de wafers de silício no país. Este é o segmento mais desafiador e de maior capital da indústria, e atrair um fab de ponta é o Santo Graal para qualquer nação com ambições em semicondutores. A primeira fase da missão, ISM 1.0, já viu seus fundos totalmente alocados, um sinal do forte interesse do mercado.

Um dos sucessos mais notáveis e um verdadeiro divisor de águas para a ISM 1.0 foi atrair a Micron Technology. A gigante americana de memória e armazenamento de dados anunciou um investimento monumental para construir uma nova instalação de montagem, teste, marcação e embalagem (ATMP) em Sanand, no estado de Gujarat. O investimento total no projeto é de US$ 2,75 bilhões, com a Micron investindo até US$ 825 milhões e o restante sendo apoiado por incentivos do governo central e do estado de Gujarat. A construção começou em 2023 e a primeira fase da planta deve se tornar operacional no final de 2024, com a segunda fase prevista para a segunda metade da década. Esta instalação da Micron, focada no back-end da produção de chips, é crucial. Embora não seja uma fábrica de wafers (front-end), uma instalação ATMP é um componente vital da cadeia de suprimentos e serve como uma âncora industrial. A presença da Micron não apenas criará até 5.000 empregos diretos e 15.000 empregos na comunidade ao longo dos próximos anos, mas, mais importante, atrairá todo o seu ecossistema de fornecedores – empresas que fornecem gases, produtos químicos, materiais e equipamentos especializados. Este efeito multiplicador é a chave para construir uma base industrial sustentável.

Paralelamente, o Grupo Tata, um dos conglomerados mais antigos e respeitados da Índia, fez uma entrada decisiva no setor, demonstrando o forte compromisso do capital nacional. A Tata Electronics, uma subsidiária do grupo, anunciou dois projetos massivos. O primeiro, e mais significativo, é a construção da primeira megafábrica de semicondutores da Índia em Dholera, também em Gujarat. Este projeto, uma parceria com a Powerchip Semiconductor Manufacturing Corp. (PSMC) de Taiwan, envolve um investimento de mais de ₹ 91.000 crore (aproximadamente US$ 11 bilhões). A fábrica terá uma capacidade de produção de 50.000 wafers por mês e se concentrará em nós de processo maduros, como 28nm, que são cruciais para uma vasta gama de aplicações, incluindo veículos elétricos, telecomunicações, defesa e computação de alto desempenho. A escolha de nós maduros é estratégica, visando o mercado de massa e evitando a competição direta com os nós de ponta (abaixo de 5nm) dominados pela TSMC e Samsung. O segundo projeto da Tata é uma instalação ATMP em Morigaon, Assam, com um investimento de ₹ 27.000 crore (aproximadamente US$ 3,2 bilhões), que se concentrará em tecnologias de embalagem avançadas, atendendo a setores como automotivo e eletrônicos de consumo. A entrada da Tata com projetos de front-end e back-end é um testemunho da abordagem holística que a Índia está adotando.

Desafios Monumentais e Oportunidades Estratégicas

A jornada da Índia para a proeminência em semicondutores, embora promissora, é repleta de desafios monumentais. A fabricação de semicondutores é talvez a indústria mais complexa e exigente do mundo. As fábricas, ou fabs, são maravilhas da engenharia moderna, exigindo investimentos de bilhões de dólares, infraestrutura impecável com fornecimento ininterrupto de energia ultra-pura e água, e um ambiente livre de poeira milhares de vezes mais limpo que uma sala de cirurgia. A Índia, embora tenha feito grandes progressos, ainda enfrenta desafios de infraestrutura em algumas partes do país. Garantir a estabilidade da rede elétrica e o fornecimento de milhões de litros de água por dia para uma única fábrica será um teste crítico para a capacidade de execução do país.

Além da infraestrutura física, há o desafio do capital humano. A indústria de semicondutores exige uma força de trabalho altamente especializada, com engenheiros e técnicos treinados em física, química, ciência dos materiais e engenharia de precisão. Embora a Índia produza milhões de engenheiros anualmente, a especialização em semicondutores ainda é um nicho. O governo e a indústria precisarão colaborar intensamente com as instituições acadêmicas para desenvolver currículos especializados, programas de treinamento e iniciativas de pesquisa para criar o pool de talentos necessário. A competição por talentos é global e feroz, e a Índia precisará não apenas treinar novos profissionais, mas também atrair de volta a diáspora indiana que atualmente trabalha em centros de semicondutores no exterior.

No entanto, cada um desses desafios mascara uma oportunidade estratégica. A crescente demanda por semicondutores, impulsionada pela digitalização acelerada de todos os aspectos da vida, da comunicação e dos negócios, cria um mercado vasto e faminto. A Índia, com seu mercado interno em rápida expansão para smartphones, eletrônicos de consumo, automóveis e data centers, oferece uma demanda cativa para os chips produzidos localmente. A política “China plus one”, que vê empresas globais diversificando suas cadeias de suprimentos para longe da China, oferece à Índia uma oportunidade de ouro para se apresentar como um destino de fabricação alternativo, estável e democrático.

Implicações Científicas, Tecnológicas e Geopolíticas

A construção de um ecossistema de semicondutores na Índia transcende a economia; ela tem profundas implicações científicas, tecnológicas e, crucialmente, geopolíticas. Do ponto de vista tecnológico, a disponibilidade de chips fabricados localmente, especialmente em nós de processo maduros, irá catalisar a inovação em todo o espectro da indústria eletrônica indiana. Fabricantes de automóveis, empresas de telecomunicações, projetistas de dispositivos IoT e o setor de defesa terão acesso a componentes essenciais de forma mais barata e confiável. Isso pode reduzir o custo dos produtos finais, aumentar a competitividade das exportações indianas e estimular o desenvolvimento de produtos projetados especificamente para as necessidades do mercado indiano.

Cientificamente, a presença de fabs e instalações de P&D de classe mundial criará um ciclo virtuoso. As universidades e institutos de pesquisa terão a oportunidade de colaborar diretamente com a indústria, orientando a pesquisa para desafios do mundo real e garantindo que os graduados tenham as habilidades que o mercado exige. O acesso a instalações de fabricação avançadas permitirá que pesquisadores indianos projetem e testem novos dispositivos e arquiteturas de chips, impulsionando a pesquisa fundamental em áreas como ciência dos materiais, computação quântica e fotônica.

Geopoliticamente, a autossuficiência em semicondutores é uma questão de soberania nacional. Os chips são a espinha dorsal da infraestrutura militar e de defesa moderna. A capacidade de projetar e fabricar seus próprios semicondutores de nível militar reduz a dependência de nações estrangeiras para componentes críticos de defesa, aumentando a autonomia estratégica da Índia. Além disso, ao se tornar um grande produtor de semicondutores, a Índia ganha uma alavancagem significativa no cenário mundial. O país se tornaria um nó crítico nas cadeias de suprimentos globais, fortalecendo suas alianças com parceiros estratégicos como os Estados Unidos, Japão e a União Europeia, que também buscam diversificar suas fontes de chips. A Índia poderia se posicionar como um contrapeso à dominância da China em outras áreas da manufatura tecnológica, alinhando-se com a visão de uma ordem global multipolar e baseada em regras.

Conclusão: O Amanhecer da Década dos Semicondutores na Índia

A Índia está à beira de uma transformação histórica. A jornada para se tornar uma potência em semicondutores é longa, árdua e cara, mas os alicerces estão sendo lançados com uma velocidade e determinação impressionantes. A combinação de vontade política, incentivos governamentais robustos, investimentos maciços do setor privado e um vasto mercado interno cria uma confluência de fatores favoráveis que a Índia não via há décadas. A Missão de Semicondutores da Índia, com seus projetos âncora da Micron e da Tata, não está apenas construindo fábricas; está construindo a confiança de que a Índia pode competir e ter sucesso no auge da manufatura tecnológica.

Se a execução corresponder à ambição, a próxima década poderá muito bem ser a “década dos semicondutores” da Índia. O sucesso não apenas impulsionará o crescimento econômico e criará milhões de empregos de alta qualidade, mas também solidificará o status da Índia como uma liderança tecnológica global, garantirá sua segurança nacional e lhe dará um assento à mesa na definição do futuro da tecnologia. O mundo está observando, e a Índia está pronta para entregar. A nova fase decisiva, como observou Konark Bhandari, não é mais uma aspiração; é uma realidade em construção, um chip de cada vez.

Referências

[1] India Semiconductor Mission. (s.d.). Home.

[2] Bhandari, K. (2025, 11 de dezembro ). India accelerating semiconductor ambitions, entering decisive new phase, says Carnegie India Fellow Konark Bhandari. ANI News.

[3] Micron Technology. (2023, 22 de junho ). Micron Announces New Semiconductor Assembly and Test Facility in India.

[4] Tata Group. (2024, 29 de fevereiro ). Tata Group to Build the Nation’s First Fab in Dholera.

[5] PIB. (2025, 15 de agosto ). Powering the Future: The Semiconductor and AI Revolution.

O Ecossistema de Suporte: Mais do que Apenas Fabs

Um erro comum ao analisar a indústria de semicondutores é focar exclusivamente nas mega-fábricas. Na realidade, uma fab é apenas o centro de uma vasta e intrincada rede de centenas de fornecedores especializados. Konark Bhandari, Fellow da Carnegie India, destaca que “atrair uma empresa âncora não é suficiente, você precisa de todo o seu ecossistema de fornecedores”. Reconhecendo isso, a próxima fase da missão, apelidada de ISM 2.0, deverá expandir significativamente o escopo dos incentivos. Espera-se que a nova política, ainda a ser lançada, inclua esquemas de incentivo à produção (PLI ) para segmentos cruciais como gases de alta pureza, produtos químicos especializados, materiais para substratos e equipamentos de metrologia. A Índia também está respondendo proativamente às restrições de exportação da China sobre minerais críticos como gálio e germânio, essenciais para a fabricação de chips. O lançamento da Missão Nacional de Minerais Críticos e um novo esquema PLI de ₹ 7.280 crore para ímãs de terras raras são movimentos defensivos e ofensivos, visando garantir o fornecimento de matéria-prima e, ao mesmo tempo, impulsionar a extração e o processamento doméstico. Esta abordagem de 360 graus, que vai da mineração de matéria-prima à embalagem final do chip, é o que diferencia a estratégia atual da Índia de tentativas anteriores.

O Modelo de IA Indiano: Desenvolvimento Humano em Primeiro Lugar

Paralelamente à sua ambição em hardware, a Índia está esculpindo um caminho único para o desenvolvimento e implementação da Inteligência Artificial (IA). Em um mundo dominado por dois modelos contrastantes – o modelo comercial liderado pelos EUA, focado na monetização, e o modelo estatal da China, focado no controle – a Índia propõe uma terceira via. Segundo Bhandari, o “modelo indiano será mais sobre fornecer acesso a recursos de computação de IA para pessoas de baixa renda”. Esta abordagem, centrada no desenvolvimento humano, visa democratizar o acesso à IA, garantindo que seus benefícios não se limitem às grandes corporações ou a uma elite urbana. A Índia sediará o AI Impact Summit em 2026, um evento que promete ser uma plataforma para o país articular e promover esta visão. No entanto, a governança de dados permanece uma questão complexa. Embora a privacidade dos dados possa ser uma preocupação doméstica, o uso de dados de usuários indianos para treinar modelos de IA estrangeiros está emergindo como um grande debate político. A Índia terá que encontrar um equilíbrio delicado entre participar do ecossistema global de IA e proteger os dados de seus cidadãos, garantindo que o valor gerado a partir desses dados beneficie a nação.

Sérgio Sacani

Formado em geofísica pelo IAG da USP, mestre em engenharia do petróleo pela UNICAMP e doutor em geociências pela UNICAMP. Sérgio está à frente do Space Today, o maior canal de notícias sobre astronomia do Brasil.

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