
Nova pesquisa utilizando rajadas rápidas de rádio (FRBs) mapeia a distribuição da matéria comum do Universo, confirmando a existência de uma vasta e rica teia cósmica que conecta todas as galáxias.
Introdução: O Enigma Cósmico Finalmente Resolvido
Durante décadas, um dos maiores mistérios da cosmologia moderna tem intrigado astrônomos ao redor do mundo: onde está escondida a maior parte da matéria comum do Universo? O cosmos que observamos, repleto de galáxias brilhantes, estrelas cintilantes e planetas rochosos, é composto fundamentalmente por matéria bariônica – aquela matéria “comum” formada por prótons, nêutrons e elétrons, os blocos fundamentais de construção de tudo o que conhecemos. No entanto, quando os cientistas tentaram fazer um inventário completo dessa matéria no Universo próximo, descobriram uma discrepância alarmante: as contagens simplesmente não batiam com as previsões teóricas baseadas nas observações do Universo primordial.
Essa discrepância deu origem ao que ficou conhecido como o “problema dos bárions perdidos”. As medições da radiação cósmica de fundo em micro-ondas – o eco do Big Bang – e da nucleossíntese primordial indicavam claramente quanto de matéria bariônica deveria existir no Universo. Porém, ao somar toda a matéria visível em galáxias, estrelas, planetas e o gás interestelar detectável, os números ficavam significativamente aquém do esperado. Faltava aproximadamente metade da matéria bariônica prevista. Onde ela poderia estar?
Agora, um estudo revolucionário liderado por uma equipe internacional de astrônomos do Center for Astrophysics | Harvard & Smithsonian e do California Institute of Technology (Caltech) parece ter finalmente desvendado esse mistério cósmico de longa data. Utilizando um método inovador e engenhoso que emprega rajadas rápidas de rádio – flashes de ondas de rádio misteriosos, intensos e extremamente breves provenientes de fontes extragalácticas distantes – os pesquisadores conseguiram literalmente “pesar” o Universo e mapear a distribuição dessa matéria esquiva que por tanto tempo permaneceu oculta aos nossos instrumentos.
Os resultados dessa pesquisa, publicados no repositório científico arXiv, não apenas localizam os bárions perdidos com precisão sem precedentes, mas também revelam a estrutura de uma vasta e rica teia cósmica de gás que permeia todo o espaço intergaláctico, conectando galáxias e aglomerados de galáxias em uma rede complexa e fascinante. Essa descoberta oferece novas e profundas percepções sobre os processos fundamentais de formação de galáxias, os mecanismos de feedback astrofísico que regulam o crescimento das estruturas cósmicas e, de forma mais ampla, sobre a própria evolução do Universo desde o Big Bang até os dias atuais.
O Universo Escondido: Detalhando a Pesquisa Pioneira
A busca pelos bárions perdidos tem sido um dos maiores e mais persistentes desafios da cosmologia observacional nas últimas décadas. Os cosmólogos sabem, com base em múltiplas linhas de evidência independentes, que a matéria bariônica compõe aproximadamente cinco por cento da densidade de energia total do Universo. O restante é composto pela enigmática matéria escura, que interage apenas gravitacionalmente, e pela ainda mais misteriosa energia escura, responsável pela expansão acelerada do cosmos. No entanto, ao realizar um censo cuidadoso de toda a matéria visível no Universo próximo – somando estrelas, planetas, gás molecular, gás atômico neutro e gás ionizado detectável em galáxias e seus arredores imediatos – os astrônomos descobriram que conseguiam contabilizar apenas cerca de metade da matéria bariônica que deveria existir.
A teoria predominante, apoiada por sofisticadas simulações computacionais de formação de estruturas cósmicas, sugeria que essa matéria faltante deveria existir na forma de um gás extremamente difuso e altamente ionizado. Esse gás estaria localizado principalmente no meio intergaláctico (IGM) – o vasto espaço entre as galáxias – e também nos halos externos de galáxias individuais e aglomerados de galáxias. A dificuldade fundamental em detectar esse gás reside em suas propriedades físicas: sua densidade extremamente baixa, tipicamente menor que um milésimo de partícula por centímetro cúbico, combinada com sua alta temperatura, que pode atingir milhões de graus Kelvin, o tornam praticamente invisível para a maioria dos telescópios e técnicas observacionais convencionais.
Para superar esse obstáculo aparentemente intransponível, a equipe de pesquisadores, liderada pelo astrofísico Liam Connor do Center for Astrophysics | Harvard & Smithsonian, decidiu empregar uma ferramenta cósmica verdadeiramente única e poderosa: as rajadas rápidas de rádio, conhecidas pela sigla FRB (do inglês Fast Radio Bursts). As FRBs são um dos fenômenos mais intrigantes e enigmáticos da astrofísica moderna. Elas consistem em pulsos de ondas de rádio extremamente intensos e energéticos, com duração de apenas alguns milissegundos – literalmente um piscar de olhos cósmico. Apesar de sua brevidade, essas rajadas liberam em poucos milissegundos tanta energia quanto o Sol emite em vários dias.
O aspecto crucial que torna as FRBs tão valiosas para esta pesquisa é o fenômeno da dispersão. À medida que essas ondas de rádio viajam através do Universo por bilhões de anos-luz, elas inevitavelmente interagem com o gás ionizado em seu caminho. Essa interação causa um atraso sutil mas mensurável na chegada das diferentes frequências de rádio – as frequências mais baixas chegam ligeiramente depois das frequências mais altas. Esse atraso, conhecido tecnicamente como “medida de dispersão” ou DM (do inglês Dispersion Measure), é diretamente proporcional à quantidade total de elétrons livres ao longo de toda a linha de visada entre a fonte da FRB e a Terra. Em outras palavras, a DM funciona como uma régua cósmica que mede a quantidade de matéria bariônica ionizada atravessada pela rajada de rádio em sua jornada até nós.
O instrumento fundamental que tornou esta pesquisa possível foi o Deep Synoptic Array (DSA-110), um interferômetro de rádio revolucionário e de última geração localizado no Owens Valley Radio Observatory (OVRO) do Caltech, na Califórnia. O DSA-110 é um telescópio verdadeiramente especial: ele foi projetado desde o início com o propósito expresso de detectar e, crucialmente, localizar FRBs com precisão angular extremamente alta. Essa capacidade de localização precisa é absolutamente essencial, pois permite que os astrônomos identifiquem a galáxia hospedeira de cada FRB e, subsequentemente, meçam seu redshift espectroscópico – um indicador direto e preciso da distância cósmica.
O DSA-110 consiste em 110 antenas parabólicas de 4,5 metros de diâmetro, distribuídas ao longo de uma área de aproximadamente um quilômetro quadrado no deserto da Califórnia. Operando na faixa de frequência de 1,28 a 1,53 gigahertz, o arranjo combina os sinais de todas as antenas para criar um telescópio virtual com uma resolução angular extraordinária. Entre janeiro de 2022 e março de 2024, durante seu período de comissionamento e operação inicial, o DSA-110 descobriu impressionantes 60 novas FRBs. Dessas, 39 tiveram suas galáxias hospedeiras identificadas com sucesso através de observações de acompanhamento com telescópios ópticos e infravermelhos, permitindo a determinação precisa de seus redshifts.
Combinando esses novos dados com observações anteriores de FRBs localizadas por outros telescópios e projetos ao redor do mundo, a equipe de Connor compilou uma amostra robusta e estatisticamente significativa de 48 FRBs com localizações precisas e redshifts conhecidos. Essa amostra representa um avanço qualitativo e quantitativo sem precedentes no estudo dos bárions cósmicos, fornecendo pela primeira vez uma base de dados suficientemente grande e precisa para análises estatísticas rigorosas.
Com essa amostra em mãos, os pesquisadores puderam realizar uma análise sofisticada e multifacetada. Eles desenvolveram um modelo estatístico avançado que particiona a DM total observada de cada FRB em seus diversos componentes físicos: a contribuição da nossa própria Via Láctea (incluindo tanto o meio interestelar quanto o halo galáctico), a contribuição da galáxia hospedeira da FRB (e possivelmente de seu halo circungaláctico), e, mais importante, a contribuição do meio intergaláctico ao longo de toda a linha de visada cósmica.
Ao analisar cuidadosamente a relação estatística entre a DM extragaláctica e o redshift para toda a amostra, os pesquisadores encontraram uma evidência forte e convincente de um fenômeno que eles denominaram “penhasco de DM” (DM Cliff). Esse penhasco manifesta-se como uma ausência notável de FRBs com valores baixos de DM extragaláctica em redshifts mais altos. Em termos mais simples, isso significa que praticamente todas as linhas de visada através do Universo interceptam uma quantidade substancial de gás ionizado, estabelecendo um “piso” estatístico mínimo para a DM. Essa descoberta implica diretamente que o Universo é permeado por um meio intergaláctico difuso e onipresente, e que a maioria das linhas de visada das FRBs inevitavelmente o intercepta múltiplas vezes ao longo de sua jornada cósmica.
Os resultados quantitativos são impressionantes e reveladores. A análise indica que uma fração significativa da matéria bariônica total do Universo, aproximadamente 76% (com uma margem de incerteza de mais ou menos 10%), reside no IGM, fora dos halos virializados das galáxias individuais. Isso confirma de forma dramática e quantitativa as previsões de longa data das simulações cosmológicas hidrodinâmicas de uma teia cósmica rica em bárions. Além disso, a medição da densidade de bárions no Universo tardio, expressa pelo parâmetro Ωb h70 = 0,051 (com incerteza de mais ou menos 0,006), está em excelente acordo – dentro de 10% – com as previsões independentes baseadas na nucleossíntese do Big Bang e nas observações do fundo cósmico de micro-ondas do Universo primordial.

Implicações Científicas: Reescrevendo Nossa Compreensão do Cosmos
As implicações desta descoberta monumental são vastas, profundas e multifacetadas, tocando em várias áreas fundamentais da astrofísica moderna e da cosmologia. Em primeiro lugar, e de forma mais direta, a localização definitiva dos bárions perdidos resolve um problema científico de longa data que tem intrigado e frustrado os cosmólogos por mais de duas décadas. Ao completar finalmente o censo da matéria comum no Universo, esta pesquisa fornece uma base sólida e empiricamente fundamentada para os modelos teóricos de formação e evolução de galáxias, permitindo que os astrofísicos refinem e testem suas teorias com muito mais precisão.
A descoberta de que a esmagadora maioria dos bárions reside no IGM, e não nos halos das galáxias como se poderia ingenuamente esperar, tem implicações profundas para nossa compreensão dos processos de “feedback” astrofísico. Feedback refere-se aos mecanismos pelos quais a formação estelar e o crescimento de buracos negros supermassivos regulam o crescimento das galáxias. Os resultados desta pesquisa sugerem fortemente a existência de processos de feedback extremamente eficientes e poderosos que são capazes de ejetar grandes quantidades de gás dos halos das galáxias para o meio intergaláctico circundante.
Esses processos podem incluir ventos estelares impulsionados por estrelas massivas jovens, explosões de supernovas que injetam energia mecânica e elementos pesados no meio circundante, e jatos relativísticos e ventos energéticos produzidos por buracos negros supermassivos ativos nos núcleos das galáxias. Ao expelir gás dos halos galácticos, esses processos não apenas enriquecem o meio intergaláctico com elementos químicos produzidos nas estrelas, mas também regulam a taxa de formação estelar nas galáxias, impedindo que todo o gás disponível seja rapidamente convertido em estrelas.
A pesquisa encontrou que, para galáxias com massas entre 10^9 e 5×10^12 massas solares, a fração de bárions nos halos circungalácticos é de apenas 0,35 (com incerteza de mais ou menos 0,30), significativamente abaixo da média cósmica. Isso requer processos de feedback capazes de expelir e/ou prevenir que o gás caia em seus poços de potencial gravitacional. Essa descoberta é consistente com simulações cosmológicas avançadas, como a IllustrisTNG e a SIMBA, que incorporam modelos sofisticados de feedback de núcleos galácticos ativos (AGN) e de supernovas.
Além disso, a medição precisa da densidade de bárions no Universo tardio está em excelente acordo com as previsões da nucleossíntese do Big Bang e das observações do fundo cósmico de micro-ondas. Essa consistência notável entre o Universo primordial (apenas 380.000 anos após o Big Bang) e o Universo local (bilhões de anos depois) fortalece significativamente o modelo cosmológico padrão Lambda-CDM, que descreve a evolução do Universo em termos de matéria escura fria (CDM) e energia escura (Lambda).
Talvez uma das implicações mais intrigantes e potencialmente revolucionárias desta pesquisa seja seu potencial para aliviar ou até mesmo resolver a chamada “tensão S8” na cosmologia. A tensão S8 refere-se a uma discrepância persistente e preocupante entre as medições da aglomeração da matéria no Universo local (quantificada pelo parâmetro S8) e as previsões baseadas nas observações do fundo cósmico de micro-ondas. As medições locais, obtidas através de técnicas como lentes gravitacionais fracas e contagens de aglomerados de galáxias, consistentemente indicam um Universo ligeiramente menos aglomerado do que o previsto pelo modelo padrão calibrado com dados do Universo primordial.
O estudo sugere que o forte feedback astrofísico necessário para expelir os bárions dos halos das galáxias para o meio intergaláctico também teria o efeito colateral de suprimir o crescimento de estruturas em grande escala. Quando o gás é ejetado dos halos, ele não está mais disponível para formar estrelas ou contribuir para o crescimento gravitacional das estruturas. Isso levaria naturalmente a um valor menor de S8 no Universo local, potencialmente reconciliando a tensão observada. Se confirmada, essa solução astrofísica para um problema aparentemente cosmológico seria um triunfo notável da astrofísica observacional.
Os pesquisadores também conseguiram colocar limites rigorosos na fração de bárions em diferentes componentes cósmicos. Eles encontraram que aproximadamente 9,2% (com incerteza de mais ou menos 1,6%) dos bárions estão em uma fase ionizada ocupando halos massivos de grupos e aglomerados de galáxias. Apenas cerca de um por cento está em gás neutro frio dentro das galáxias. Isso leva à conclusão de que o meio circungaláctico (CGM) de galáxias individuais não pode abrigar uma fração substancial dos bárions do Universo. A análise global está em excelente acordo com estudos detalhados de linhas de visada individuais de FRBs que intersectam halos de galáxias em primeiro plano.
Notavelmente, a DM cosmológica média das FRBs coloca um limite superior na massa estelar total do Universo. Os resultados sugerem que mais de noventa por cento dos bárions estão no estado ionizado difuso ou em gás frio (isto é, não em estrelas). Essa restrição é independente da modelagem da distribuição de energia espectral das galáxias, da escolha da função de massa inicial (IMF) que determina a distribuição de massas estelares, e do corte de baixa massa que afeta os métodos típicos de estimativa de massa estelar. Os pesquisadores colocam um limite superior de 90% na fração de bárions em estrelas em baixos redshifts, correspondendo a uma densidade de massa estelar menor ou igual a 5,6 × 10^8 massas solares por megaparsec cúbico.
Conclusão: Um Novo Mapa do Universo e Perspectivas Futuras
Em suma, a pesquisa liderada por Liam Connor e sua equipe internacional representa um marco verdadeiramente histórico na astronomia e na cosmologia observacional. Ao utilizar as rajadas rápidas de rádio como faróis cósmicos que iluminam a estrutura oculta do Universo, eles não apenas encontraram a matéria perdida que há tanto tempo eludia os astrônomos, mas também nos deram um vislumbre sem precedentes da arquitetura fundamental da teia cósmica que conecta todas as estruturas do Universo.
A confirmação empírica de que a maior parte da matéria bariônica reside em um meio intergaláctico difuso, ionizado e extremamente tênue, e não nos halos das galáxias onde a gravidade poderia confiná-la, tem profundas implicações para nossa compreensão dos processos físicos que governam a formação de galáxias, a natureza e eficiência do feedback astrofísico, e os fundamentos da cosmologia de precisão. O estudo demonstra de forma eloquente o poder transformador de novas tecnologias observacionais, como o revolucionário DSA-110, para desvendar os mistérios mais profundos do cosmos.
Olhando para o futuro, as perspectivas são extraordinariamente promissoras. Com a promessa de descobrir centenas ou até milhares de FRBs adicionais nos próximos anos, à medida que o DSA-110 continua suas operações e outros telescópios dedicados entram em funcionamento ao redor do mundo, os astrônomos estão preparados para mapear a teia cósmica com detalhes e resolução espacial sem precedentes. Cada nova FRB localizada adiciona uma nova linha de visada através do Universo, permitindo a construção de mapas tridimensionais cada vez mais detalhados da distribuição de matéria bariônica em escalas cósmicas.
Essa nova janela para o Universo escondido promete não apenas refinar nossas medições dos parâmetros cosmológicos fundamentais, mas também revelar a física dos processos de feedback em diferentes ambientes cósmicos, traçar a história da reionização do Universo, e potencialmente descobrir fenômenos completamente novos e inesperados. À medida que nos aproximamos de uma compreensão completa da distribuição e evolução da matéria comum no cosmos, nos aproximamos também de respostas para questões fundamentais sobre nossa origem, nossa história cósmica e nosso lugar no vasto e maravilhoso Universo que chamamos de lar.

Perguntas Frequentes (FAQ) – Teia Cósmica e Bárions Perdidos
1. O que são os “bárions perdidos” do Universo?
Os bárions perdidos referem-se à matéria bariônica comum (prótons, nêutrons e elétrons) que os astrônomos sabiam que deveria existir no Universo com base em cálculos teóricos e observações do Universo primordial, mas que não conseguiam detectar diretamente. Quando os cientistas somavam toda a matéria visível em estrelas, galáxias e gás detectável, encontravam apenas cerca de metade da matéria bariônica prevista. A outra metade estava “perdida” – não porque tivesse desaparecido, mas porque estava em uma forma extremamente difusa e difícil de detectar: gás ionizado no meio intergaláctico, com densidade menor que um milésimo de partícula por centímetro cúbico.
2. O que são as rajadas rápidas de rádio (FRBs) e como elas ajudaram a resolver esse mistério?
As rajadas rápidas de rádio, ou FRBs (Fast Radio Bursts), são pulsos extremamente intensos de ondas de rádio que duram apenas alguns milissegundos, mas liberam tanta energia quanto o Sol emite em vários dias. Elas se originam de galáxias distantes e viajam bilhões de anos-luz até chegar à Terra. Durante essa jornada, as ondas de rádio interagem com o gás ionizado no espaço, causando um atraso mensurável entre diferentes frequências – um fenômeno chamado dispersão. Esse atraso é diretamente proporcional à quantidade de elétrons livres ao longo do caminho, funcionando como uma “régua cósmica” que mede a quantidade total de matéria bariônica ionizada entre a fonte e a Terra. Ao analisar 48 FRBs localizadas em suas galáxias hospedeiras, os pesquisadores conseguiram mapear a distribuição dos bárions perdidos.
3. O que é a “teia cósmica” revelada por este estudo?
A teia cósmica é a estrutura em grande escala do Universo, formada por filamentos gigantescos de gás e matéria escura que conectam galáxias e aglomerados de galáxias. Imagine uma esponja tridimensional ou uma rede neural: os nós são os aglomerados de galáxias, os filamentos são as “pontes” de gás que os conectam, e os vazios são as regiões praticamente desprovidas de matéria. Este estudo revelou que esses filamentos são ricos em gás bariônico ionizado – aproximadamente 76% de toda a matéria comum do Universo reside nessa teia intergaláctica. Embora simulações computacionais já previssem essa estrutura, esta é a primeira vez que ela foi observada diretamente e quantificada com precisão através de medições de FRBs.
4. O que é o DSA-110 e por que ele foi fundamental para esta descoberta?
O Deep Synoptic Array (DSA-110) é um radiotelescópio revolucionário localizado no Owens Valley Radio Observatory, na Califórnia. Ele consiste em 110 antenas parabólicas de 4,5 metros de diâmetro distribuídas por aproximadamente um quilômetro quadrado. O DSA-110 foi projetado especificamente para detectar e, crucialmente, localizar FRBs com precisão angular extremamente alta – algo essencial para identificar suas galáxias hospedeiras e medir suas distâncias. Entre janeiro de 2022 e março de 2024, o DSA-110 descobriu 60 novas FRBs, das quais 39 tiveram suas galáxias hospedeiras identificadas. Sem essa capacidade de localização precisa, seria impossível separar as contribuições do meio intergaláctico, dos halos galácticos e das galáxias hospedeiras na medida de dispersão total.
5. O que é o “penhasco de DM” (DM Cliff) mencionado na pesquisa?
O “penhasco de DM” é um fenômeno observacional descoberto neste estudo que se manifesta como uma ausência notável de FRBs com valores baixos de medida de dispersão (DM) extragaláctica em redshifts mais altos. Em termos práticos, isso significa que existe um “piso” mínimo de DM que todas as FRBs distantes apresentam, independentemente de sua direção no céu. Esse piso existe porque praticamente todas as linhas de visada através do Universo inevitavelmente interceptam múltiplos filamentos da teia cósmica contendo gás ionizado. A existência do penhasco de DM é uma evidência direta e poderosa de que o meio intergaláctico é onipresente e rico em bárions, confirmando que o Universo é permeado por essa vasta teia de gás difuso.
6. Como esta descoberta afeta nossa compreensão da formação de galáxias?
Esta descoberta tem implicações profundas para a formação de galáxias. O fato de que 76% dos bárions estão no meio intergaláctico, e não nos halos das galáxias, indica que processos de “feedback” astrofísico são extremamente eficientes em ejetar gás das galáxias. Esses processos incluem ventos estelares de estrelas massivas, explosões de supernovas e jatos energéticos de buracos negros supermassivos. Ao expelir gás, esses mecanismos regulam a taxa de formação estelar, impedindo que as galáxias convertam todo seu gás em estrelas muito rapidamente. Isso explica por que as galáxias não são muito mais massivas do que observamos e por que a formação estelar ocorre de forma relativamente lenta e controlada ao longo de bilhões de anos. Os resultados sugerem que o feedback é ainda mais poderoso do que muitos modelos teóricos previam.
7. O que é a “tensão S8” e como este estudo pode ajudar a resolvê-la?
A tensão S8 é uma discrepância preocupante na cosmologia moderna entre duas formas diferentes de medir a aglomeração da matéria no Universo. Medições baseadas no fundo cósmico de micro-ondas (o Universo primordial) preveem um Universo ligeiramente mais aglomerado do que as medições locais baseadas em lentes gravitacionais fracas e contagens de aglomerados de galáxias. Este estudo sugere uma possível solução: o forte feedback astrofísico necessário para expelir os bárions dos halos das galáxias para o meio intergaláctico também suprimiria o crescimento de estruturas em grande escala. Quando o gás é ejetado, ele não está mais disponível para formar estrelas ou contribuir para o crescimento gravitacional das estruturas, levando naturalmente a um Universo menos aglomerado. Se confirmada, essa seria uma solução astrofísica elegante para um problema aparentemente cosmológico fundamental.
8. Quantos bárions estão em estrelas, galáxias e aglomerados de galáxias?
De acordo com este estudo, a distribuição dos bárions no Universo é a seguinte: aproximadamente 76% estão no meio intergaláctico difuso (IGM), cerca de 9,2% estão em gás ionizado quente em halos massivos de grupos e aglomerados de galáxias, apenas cerca de 1% está em gás neutro frio dentro das galáxias, e menos de 10% estão em estrelas e remanescentes estelares. Isso significa que mais de 90% de toda a matéria comum do Universo está em forma de gás difuso ou ionizado, não em estrelas. Essa descoberta coloca limites rigorosos na massa estelar total do Universo e tem implicações importantes para a função de massa inicial (IMF) que descreve a distribuição de massas estelares ao nascimento.
9. Esta descoberta está de acordo com as previsões do Big Bang?
Sim, e de forma notável! A medição da densidade de bárions no Universo tardio obtida neste estudo (Ωb h70 = 0,051) está em excelente acordo – dentro de 10% – com as previsões independentes baseadas na nucleossíntese do Big Bang (que descreve a formação dos primeiros elementos químicos nos primeiros minutos após o Big Bang) e nas observações do fundo cósmico de micro-ondas (a radiação remanescente do Big Bang, emitida quando o Universo tinha apenas 380.000 anos). Essa consistência extraordinária entre o Universo primordial e o Universo local, separados por quase 14 bilhões de anos de evolução cósmica, é um triunfo do modelo cosmológico padrão Lambda-CDM e demonstra que nossa compreensão fundamental da evolução do Universo está essencialmente correta.
10. Quais são os próximos passos desta pesquisa e o que podemos esperar no futuro?
Os próximos passos são extraordinariamente promissores. À medida que o DSA-110 continua suas operações e outros telescópios dedicados à detecção de FRBs entram em funcionamento ao redor do mundo, espera-se a descoberta de centenas ou até milhares de FRBs adicionais nos próximos anos. Cada nova FRB localizada adiciona uma nova linha de visada através do Universo, permitindo a construção de mapas tridimensionais cada vez mais detalhados da distribuição de matéria bariônica em escalas cósmicas. Esses mapas permitirão estudar a física dos processos de feedback em diferentes ambientes, traçar a história da reionização do Universo (quando as primeiras estrelas e galáxias ionizaram o gás neutro primordial), refinar as medições dos parâmetros cosmológicos fundamentais, e potencialmente descobrir fenômenos completamente novos e inesperados na estrutura em grande escala do Universo.



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