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Astrônomos Fazem Observação Inédita do Olho de Sauron no Espaço Profundo

Em uma reviravolta monumental para a astrofísica, uma equipe internacional de cientistas, liderada pelo Instituto Max Planck de Radioastronomia, anunciou hoje uma descoberta que não apenas lança nova luz sobre alguns dos fenômenos mais energéticos do universo, mas também oferece uma solução elegante para um enigma que tem confundido astrônomos por décadas: a “Crise do Fator Doppler”. Ao estudar o enigmático blazar PKS 1424+240, um tipo especial de galáxia ativa, os pesquisadores obtiveram uma visão sem precedentes de seu jato relativístico – uma torrente de partículas subatômicas disparadas do coração de um buraco negro supermassivo – revelando que estamos observando esse objeto de um ponto de vista incrivelmente privilegiado: estamos “olhando para dentro do cone do jato”.

Essa orientação única, com o jato apontado quase diretamente para a Terra, atua como um amplificador cósmico, maximizando o que é conhecido como “efeito Doppler” ou “impulsionamento relativístico” e, consequentemente, intensificando drasticamente a emissão de raios gama de muito alta energia (VHE) e, crucialmente, de neutrinos cósmicos provenientes dessa fonte. A pesquisa, baseada em 16 anos de observações detalhadas com o Very Long Baseline Array (VLBA) em 15 GHz, revela não apenas a geometria extrema desse blazar, mas também a presença de um campo magnético toroidal complexo em seu jato, indicando que ele é percorrido por correntes elétricas.

A Crise do Fator Doppler: Um Enigma de Quase Quatro Décadas

Para entender a magnitude dessa descoberta, é fundamental mergulhar na “Crise do Fator Doppler”, um problema que tem sido uma barreira significativa para o progresso na compreensão das galáxias ativas, ou AGN (do inglês, Active Galactic Nuclei), por mais de 35 anos. No coração de cada galáxia massiva reside um buraco negro supermassivo, e em algumas delas, esse buraco negro está ativamente “se alimentando”, puxando matéria para si. Esse processo libera quantidades inimagináveis de energia, que podem ser canalizadas para formar jatos poderosos, expulsando plasma e partículas a velocidades próximas à da luz.

Esses jatos são a fonte da emissão de raios gama de muito alta energia (VHE) e, suspeita-se, também dos neutrinos cósmicos. No entanto, a forma como essas partículas massivas são aceleradas a energias tão extremas e como produzem essas formas de radiação e partículas é um desafio fundamental na astrofísica.

A “Crise do Fator Doppler” surge de uma contradição aparentemente insolúvel. Por um lado, a observação da variabilidade extremamente rápida dos raios gama de muito alta energia (VHE) em blazares – um subtipo de AGN cujos jatos estão apontados quase na direção da Terra – sugere que a matéria nos jatos deve estar se movendo em velocidades incrivelmente próximas à da luz, resultando em um fator Doppler (δ) muito alto. O fator Doppler é uma medida de quão intensamente a luz ou outras formas de radiação de uma fonte em movimento rápido são “impulsionadas” ou amplificadas na direção do observador. Quanto maior o fator Doppler, mais brilhante e mais rápido parece ser o objeto.

No entanto, as observações diretas da velocidade aparente dos “nós” ou componentes dentro desses mesmos jatos, feitas com técnicas de interferometria de rádio de base muito longa (VLBI) – uma espécie de “super-telescópio” que combina dados de muitas antenas de rádio separadas por grandes distâncias para obter uma resolução incrivelmente alta –, consistentemente mostravam velocidades aparentes relativamente baixas, tipicamente menores que 2 a 3 vezes a velocidade da luz (chamadas de velocidades “superluminais” aparentes, que na verdade são uma ilusão de ótica causada pela projeção do movimento quase à velocidade da luz na nossa linha de visão). Essas velocidades baixas sugeriam um fator Doppler bem menor, contradizendo as altas estimativas derivadas da variabilidade de raios gama. Essa inconsistência, entre o que a variabilidade de VHE implicava e o que as observações de rádio mostravam, era a essência da “Crise do Fator Doppler”.

PKS 1424+240: Um Alvo Excepcional para uma Resposta Cósmica

O objeto central desta pesquisa, o blazar PKS 1424+240 (também conhecido como OQ 240), já era conhecido por ser excepcional. Com um redshift de z = 0.605, ele é o blazar mais distante já detectado com emissão de raios gama de muito alta energia (VHE) em um estado de quiescência, ou seja, sem estar em um “surto” ou “flare” de energia. Mais ainda, ele foi identificado como a provável fonte do segundo pico de excesso de neutrinos no céu do hemisfério norte em uma análise de nove anos de dados do Observatório IceCube, um detector de neutrinos de vanguarda localizado no Polo Sul.

Neutrinos são partículas subatômicas extremamente leves e elusivas, que interagem muito fracamente com a matéria. Eles podem viajar através do universo por bilhões de anos sem serem desviados ou absorvidos, carregando informações diretas de seus locais de origem. A detecção de neutrinos de alta energia é um campo relativamente novo e emocionante, conhecido como “astronomia de multimensageiros”, que combina observações de diferentes “mensageiros” cósmicos (luz, raios cósmicos, neutrinos, ondas gravitacionais) para obter uma compreensão mais completa do universo. A identificação do PKS 1424+240 como uma das fontes mais promissoras de neutrinos de alta energia o tornou um alvo primordial para estudo.

Acredita-se que os neutrinos de alta energia sejam produzidos em ambientes astrofísicos extremos, onde partículas como prótons são aceleradas a energias colossais. Nos blazares, o mecanismo provável de produção de neutrinos é através do chamado processo “pγ” (próton-fóton), onde prótons altamente energéticos colidem com fótons dentro do jato, resultando na criação de píons, que então decaem para produzir neutrinos e outras partículas. A localização precisa de onde essa aceleração de prótons e a subsequente produção de neutrinos ocorrem dentro dos jatos é uma questão em aberto, mas as evidências apontam para o núcleo de rádio do blazar ou para as regiões próximas ao buraco negro central, ou talvez na interface entre a “espinha” rápida do jato e uma “bainha” mais lenta.

A Observação Revolucionária: Olhando para Dentro do Cone do Jato

A chave para desvendar os segredos do PKS 1424+240 reside na capacidade de “ver” as estruturas em escalas de parsec (onde um parsec é cerca de 3,26 anos-luz) a partir do motor central da galáxia – as escalas onde a emissão de raios gama e a produção de neutrinos ocorrem. Para isso, os cientistas utilizaram o VLBA, uma rede de dez radiotelescópios espalhados pelos Estados Unidos, que juntos formam um “telescópio virtual” do tamanho de um continente, proporcionando a maior resolução angular disponível em rádio astronomia.

A equipe empregou uma técnica poderosa e sofisticada chamada “empilhamento de imagens” (stacking). Ao invés de usar uma única observação, eles combinaram e empilharam cuidadosamente 42 imagens polarimétricas do PKS 1424+240 coletadas ao longo de 16 anos, entre 2009 e 2025, no âmbito do programa MOJAVE (Monitoring Of Jets in Active galactic nuclei with VLBA Experiments). Esse processo de empilhamento é análogo a tirar muitas fotos do mesmo objeto e depois alinhá-las e combiná-las para criar uma imagem muito mais nítida e detalhada, com um “alcance dinâmico” (a capacidade de ver tanto o brilho intenso quanto as áreas mais fracas) muito maior do que qualquer imagem individual. Ao fazer isso, eles puderam não apenas aumentar a sensibilidade e o detalhe, mas também reconstruir a morfologia completa do jato, incluindo as áreas de baixo brilho, e revelar o “canal” inteiro do jato, não apenas os pontos de emissão mais brilhantes em um determinado momento. Esse método se provou crucial para a descoberta.

Uma análise rápida das observações iniciais do PKS 1424+240 já havia revelado uma pista intrigante: seu jato possuía um ângulo de abertura aparente excepcionalmente grande, de 65 graus. Isso, geometricamente, indicava que o ângulo de visão do jato (θ) em relação à nossa linha de visão era muito pequeno. E um ângulo de visão pequeno, por sua vez, implica um forte impulsionamento Doppler.

As observações empilhadas confirmaram essa hipótese de forma espetacular. A principal descoberta é que o PKS 1424+240 está sendo observado “dentro do cone do jato”, com um ângulo de visão incrivelmente pequeno, inferior a 0,6 graus. Para dar uma perspectiva, isso é como olhar para o cano de uma arma de fogo a partir de uma distância muito grande, quase perfeitamente alinhado com o eixo do cano. Essa geometria é extremamente rara do ponto de vista estatístico, mas o efeito Doppler (que faz com que objetos apontados para nós sejam vistos como muito mais brilhantes) significa que esses objetos super-alinhados dominam as amostras selecionadas por brilho. Estima-se que apenas alguns por cento dos jatos observados com VLBI sejam vistos dentro de um grau de nossa linha de visão.

O “Olho de Sauron” e o Campo Magnético Toroidal

Além da geometria, as observações polarimétricas revelaram outro aspecto crucial do jato: seu campo magnético. A polarização da luz (ou, neste caso, das ondas de rádio) pode revelar a orientação dos campos magnéticos em uma fonte cósmica. Ao analisar a “posição do vetor elétrico” (EVPA) nas imagens polarizadas, os pesquisadores notaram uma distribuição notavelmente uniforme, com um padrão de “raios divergentes” partindo do núcleo do blazar.

Para visualizar melhor essa estrutura, eles reconstruíram a direção do campo magnético girando o EVPA em 90 graus, assumindo que outros efeitos não estavam distorcendo significativamente a direção observada. O resultado é uma imagem impressionante que os pesquisadores batizaram de “Olho de Sauron” (em referência ao vilão da obra de J. R. R. Tolkien, “O Senhor dos Anéis”), devido à sua natureza “marcante” e semelhança com as ilustrações do olho.

Essa imagem revelou a detecção inequívoca de um componente toroidal líquido no campo magnético do jato. Um campo magnético toroidal é aquele que se enrola como um anel ou um donut, ou como as espiras de uma mola helicoidal. Isso é uma evidência poderosa de que o jato é “portador de corrente”, o que significa que ele possui correntes elétricas fluindo ao longo de seu comprimento. Essa descoberta é consistente com modelos amplamente discutidos que propõem uma estrutura de campo magnético helicoidal geral em jatos relativísticos. A presença de um campo magnético toroidal forte é fundamental para a estabilidade e colimação (manter o jato estreito e focado) dos jatos, bem como para os mecanismos de aceleração de partículas.

Parâmetros do Jato: Uma Máquina de Aceleração Extrema

As observações detalhadas com VLBA permitiram aos cientistas estimar os parâmetros fundamentais do jato do PKS 1424+240. Embora as velocidades aparentes dos componentes do jato medidas previamente (βapp,1 = 2.83 ± 0.89 e βapp,2 = 1.91 ± 0.18, onde βapp é a velocidade em unidades da velocidade da luz) fossem consideradas “moderadas”, a nova compreensão da geometria de visualização mudou tudo.

Assumindo um ângulo de abertura intrínseco típico para jatos de blazares (αint = 1.2 graus) e a condição de que o objeto é visto “dentro do cone do jato” (θ < αint/2), os pesquisadores modelaram os parâmetros do jato. Eles concluíram que um conjunto de parâmetros é consistentemente alinhado com suas observações e o modelo: um fator de Lorentz (Γ) de 16 (indicando que o plasma do jato se move a 99,8% da velocidade da luz), um ângulo de abertura intrínseco de 1,2 graus, e, crucialmente, um ângulo de visão (θ) de apenas 0,3 graus.

Com esses parâmetros, o fator Doppler (δ) para o PKS 1424+240 foi calculado como 32. Este valor é aproximadamente três vezes maior do que os valores medianos de fator Doppler encontrados para a maioria dos blazares na amostra MOJAVE. Esse fator Doppler excepcionalmente alto é a peça que faltava para resolver a “Crise do Fator Doppler”.

A Solução da Crise: Pequeno Ângulo de Visão, Grande Impulsionamento

A solução proposta pelos pesquisadores é elegante e direta: a aparente velocidade baixa observada em rádio para PKS 1424+240 não contradiz, mas sim é consistente com, um fator Doppler muito alto quando o jato é visto de um ângulo extremamente pequeno. Quando o jato está quase perfeitamente alinhado com a nossa linha de visão, o movimento lateral aparente (que gera a velocidade superluminal) é minimizado, enquanto o impulsionamento relativístico na direção do observador é maximizado.

Em outras palavras, o que antes parecia ser uma contradição – alta variabilidade VHE exigindo alto Doppler, mas baixa velocidade aparente em rádio sugerindo baixo Doppler – agora é reconciliado. As observações do PKS 1424+240 demonstram que o fator Doppler inferido das observações de raios gama de muito alta energia (VHE) (que, para este blazar, seria cerca de 30 para explicar o fluxo de raios gama) e o fator Doppler derivado das observações de rádio podem ser consistentes, eliminando a necessidade de postular diferentes locais para as emissões de rádio e de alta energia.

Essa descoberta reafirma que o impulsionamento relativístico desempenha um papel absolutamente crítico na emissão de raios gama e neutrinos dos blazares. A geometria específica do jato do PKS 1424+240, estando tão intimamente alinhado com a nossa linha de visão, fornece um aprimoramento Doppler adicional em seus fluxos de multiobservação e multimensageiros. Esse impulsionamento extraordinário é o que torna o PKS 1424+240 persistentemente brilhante, mantendo um fluxo médio elevado que o coloca entre o 1% dos mais brilhantes emissores de raios gama. É também o blazar mais brilhante em termos de emissão de neutrinos de alta energia.

Implicações Profundas para a Astrofísica Multimensageira

A identificação de um blazar como o PKS 1424+240, que é visto diretamente no cone do jato, tem implicações diretas e profundas para os modelos de emissão multimensageira desses objetos. Ela sugere que a aceleração de partículas massivas, bem como a produção de raios gama de muito alta energia (VHE) e neutrinos, são grandemente influenciadas por essa orientação de visualização extrema.

Essa nova compreensão não apenas pavimenta o caminho para modelos quantitativos mais precisos da produção de neutrinos em jatos, mas também nos permite entender melhor o papel do impulsionamento na emissão de raios gama. Além disso, a observação de jatos dentro de seu cone de plasma oferece uma oportunidade única para determinar seus parâmetros intrínsecos reais e para reconstruir a estrutura projetada do campo magnético com uma clareza sem precedentes.

Mais do que isso, jatos como o do PKS 1424+240 podem representar uma classe distinta de AGN, caracterizada por uma emissão de raios gama de muito alta energia (VHE) e neutrinos significativamente aprimorada. Embora a probabilidade geométrica de um ângulo de visão quase zero seja baixa, o viés Doppler (a tendência de observarmos preferencialmente objetos que estão se movendo em nossa direção e cujas emissões são, portanto, amplificadas) significa que uma fração pequena, mas significativa, de tais jatos (alguns por cento) domina as amostras de blazares selecionados por fluxo. Isso explica por que, apesar de sua raridade intrínseca, podemos observar objetos tão extremos.

A detecção de um campo magnético toroidal proeminente é outro passo crucial. Campos magnéticos são a “espinha dorsal” dos jatos, responsáveis por sua formação, colimação e, provavelmente, pelos mecanismos que aceleram as partículas a energias tão extremas. A confirmação de um jato “portador de corrente” através da detecção desse campo magnético toroidal fornece informações valiosas para os modelos teóricos de como esses jatos são formados e mantidos por buracos negros supermassivos.

O Futuro da Astronomia de Multimensageiros

Esta pesquisa não é apenas uma vitória para a rádioastronomia e a física de jatos, mas um marco para a crescente área da astronomia de multimensageiros. Ao fornecer uma explicação coerente para a origem dos raios gama de muito alta energia (VHE) e dos neutrinos em blazares, ela fortalece a ligação entre esses misteriosos jatos cósmicos e os fenômenos mais energéticos do universo.

As descobertas para o PKS 1424+240 abrem o caminho para uma compreensão mais profunda da emissão de fótons de alta energia e neutrinos dos jatos de blazares. Futuras observações deste e de outros blazares que emitem raios gama de muito alta energia (VHE) serão essenciais para refinar os modelos de produção de neutrinos em jatos e para desvendar completamente o papel do impulsionamento relativístico nessa intrincada dança cósmica.

Essa pesquisa foi conduzida por uma colaboração internacional, envolvendo instituições de destaque como o Max Planck Institute for Radio Astronomy na Alemanha, o Crimean Astrophysical Observatory, o Lebedev Physical Institute da Academia Russa de Ciências, o Instituto de Astrofísica de Andalucía-CSIC na Espanha, Denison University, Purdue University, Black Hole Initiative na Harvard University, Aalto University na Finlândia, e o Institute for Nuclear Research e Lomonosov Moscow State University na Rússia. Os dados utilizados nesta pesquisa estão disponíveis publicamente, permitindo que a comunidade científica continue a explorar e expandir essas descobertas.

A cada nova observação, desvendamos mais peças do gigantesco quebra-cabeça cósmico. A “visão de dentro do cone do jato” do blazar PKS 1424+240 é um desses momentos de clareza, oferecendo uma janela sem precedentes para os processos extremos que governam os aceleradores de partículas mais poderosos do universo e, talvez, as origens dos neutrinos cósmicos que nos bombardeiam do espaço profundo.

Sérgio Sacani

Formado em geofísica pelo IAG da USP, mestre em engenharia do petróleo pela UNICAMP e doutor em geociências pela UNICAMP. Sérgio está à frente do Space Today, o maior canal de notícias sobre astronomia do Brasil.

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