
O Atacama Cosmology Telescope (ACT) lança o Data Release 6 (DR6), o mais detalhado mapa da radiação cósmica de fundo já criado, abrindo uma nova janela para os segredos do universo primordial.
Introdução: Uma Nova Janela para o Big Bang
No coração do Deserto do Atacama, no Chile, a 5.190 metros de altitude, o Atacama Cosmology Telescope (ACT) tem observado silenciosamente os ecos do Big Bang. Esta semana, a colaboração internacional do ACT anunciou o lançamento do seu sexto conjunto de dados, o Data Release 6 (DR6), um marco monumental na cosmologia moderna. Este novo mapa da Radiação Cósmica de Fundo (CMB) — a luz mais antiga do universo — é o mais extenso e detalhado já produzido, cobrindo uma área de 19.000 graus quadrados do céu, o que equivale a quase metade da esfera celeste visível.
Os dados, coletados entre 2017 e 2022 com a câmera de última geração AdvancedACT, representam um salto quântico em sensibilidade e volume, contendo entre seis a dez vezes mais informações que todos os lançamentos anteriores combinados. Para contextualizar a magnitude deste feito, estamos falando de 428 terabytes de dados brutos, cuidadosamente comprimidos para 144 terabytes, processados ao longo de anos por uma equipe internacional de mais de cem cientistas. Este volume colossal de informação foi obtido durante 1.883 dias de operação, com uma impressionante eficiência de observação de 46%, resultando em 870 dias de dados científicos puros de altíssima qualidade.
O DR6 não apenas aprimora nossa compreensão sobre a origem e evolução do cosmos, mas também estabelece um novo padrão para a cosmologia de precisão. Ele oferece aos cientistas uma ferramenta sem precedentes para testar o modelo cosmológico padrão (ΛCDM), investigar a natureza da matéria escura e da energia escura, e procurar por novas físicas que possam estar escondidas nas sutis flutuações de temperatura e polarização da CMB. Este lançamento é o culminar de anos de trabalho árduo e inovação tecnológica, prometendo revolucionar nosso conhecimento sobre o universo em suas fases mais iniciais e sua estrutura em grande escala.
A Radiação Cósmica de Fundo é, essencialmente, o brilho remanescente do Big Bang, emitido quando o universo tinha apenas 380.000 anos de idade. Naquela época, o cosmos havia esfriado o suficiente para que prótons e elétrons se combinassem para formar átomos de hidrogênio neutro, permitindo que a luz viajasse livremente pelo espaço pela primeira vez. Esta “superfície de último espalhamento” é o que observamos hoje como a CMB, uma radiação de micro-ondas que permeia todo o universo com uma temperatura média de 2,7 Kelvin, apenas alguns graus acima do zero absoluto.
Desenvolvimento Principal: A Saga do Atacama Cosmology Telescope
O Atacama Cosmology Telescope é mais do que apenas um telescópio; é uma máquina do tempo. Sua missão é capturar a luz fóssil do universo, a Radiação Cósmica de Fundo, emitida apenas 380.000 anos após o Big Bang. Esta radiação permeia todo o espaço e carrega consigo a impressão digital do universo infantil. As minúsculas variações de temperatura e polarização nesta luz antiga revelam as sementes das estruturas que vemos hoje, como galáxias e aglomerados de galáxias. Para capturar estas flutuações com a precisão necessária, o ACT utiliza um espelho primário de seis metros e uma série de detectores supercondutores extremamente sensíveis, resfriados a uma fração de grau acima do zero absoluto (cerca de 100 miliKelvin).
A localização no Deserto do Atacama é crucial para o sucesso da missão. Esta região, considerada um dos lugares mais secos do planeta, oferece condições atmosféricas excepcionais para observações astronômicas em micro-ondas. A altitude elevada de 5.190 metros coloca o telescópio acima de grande parte da atmosfera terrestre, reduzindo drasticamente a absorção e a emissão de radiação de micro-ondas pelo vapor d’água atmosférico. Esta vantagem é fundamental, pois mesmo pequenas quantidades de vapor d’água podem obscurecer o sinal da CMB, que é extremamente tênue. O céu limpo e estável do Atacama permite que o ACT observe continuamente por longas noites, acumulando os dados necessários para criar mapas de altíssima sensibilidade.
O Data Release 6 (DR6) é o resultado de um upgrade significativo no instrumento, conhecido como AdvancedACT (AdvACT). Esta nova câmera, instalada entre 2016 e 2017, expandiu drasticamente as capacidades do telescópio. O AdvACT opera em cinco bandas de frequência distintas: 98, 150, 220 GHz (analisadas no DR6), além de 30 e 40 GHz (cujos dados serão lançados posteriormente). Esta cobertura multifrequencial é essencial para separar o sinal da CMB de outras fontes de radiação de micro-ondas, como a emissão de poeira galáctica e a radiação síncrotron de elétrons relativísticos em nossa própria Via Láctea.

A tecnologia por trás do AdvACT é verdadeiramente impressionante. A câmera consiste em três tubos ópticos, cada um abrigando um array polarizado dicróico (PA) com um campo de visão de 0,85 graus no céu. Cada PA é equipado com polarímetros de sensor de borda de transição de alumínio-manganês (AlMn) acoplados a feedhorns, fabricados em wafers de silício de 150 milímetros de diâmetro. Estes detectores operam a temperaturas criogênicas de cerca de 100 miliKelvin, mantidas por um sistema de refrigeração complexo que utiliza hélio líquido e refrigeradores de diluição. A leitura dos sinais dos detectores é realizada por um sistema SQUID (Superconducting Quantum Interference Device) de dois estágios, especificamente projetado para multiplexação por divisão de tempo, permitindo que centenas de detectores sejam lidos simultaneamente.
Durante o período de observação do DR6, de 2017 a 2019, o ACT operou com dois arrays de média frequência (MF, f090/f150), denominados PA5 e PA6, e um array de alta frequência (HF, f150/f220), denominado PA4. No início de 2020, o array MF PA6 foi substituído pelo array de baixa frequência (LF) PA7 (f030/f040), expandindo ainda mais a cobertura espectral do telescópio. Esta configuração permite que o ACT observe simultaneamente em múltiplas frequências, maximizando a eficiência da coleta de dados e facilitando a remoção de contaminações.
A quantidade de dados coletados é impressionante: 428 terabytes de dados brutos, comprimidos para 144 terabytes usando a biblioteca de compressão sem perdas libslim, foram processados para criar os mapas do DR6. Este volume colossal de informação foi obtido ao longo de 1.883 dias, com uma eficiência de observação de 46%, resultando em 870 dias de dados científicos puros. Destes, 828 dias (95%) são observações dedicadas da CMB, enquanto o restante consiste em observações de alvos de calibração, como planetas. Dos dados de CMB, 428 dias (52%) foram observados durante a noite, quando as condições são ideais, e 400 dias (48%) durante o dia, quando a qualidade é tipicamente inferior devido ao calor do Sol deformando a superfície do espelho.
A análise destes dados é uma tarefa hercúlea que requer sofisticados algoritmos e poder computacional massivo. Os cientistas precisam primeiro limpar os dados de várias contaminações, desde o brilho da atmosfera até a interferência de satélites e raios cósmicos. O processo de seleção de dados é rigoroso, dividido em múltiplos estágios para garantir a mais alta qualidade. Os dados são segmentados em blocos de 11 minutos, chamados de Time-Ordered Data (TODs), que são avaliados e aceitos ou rejeitados com base em critérios como a estabilidade atmosférica (medida pelo conteúdo de vapor d’água precipitável, ou PWV), o número de detectores funcionando corretamente, e a ausência de deformações excessivas do feixe durante o dia.
Tipicamente, cerca de 75% dos dados noturnos e 50% dos dados diurnos passam por este primeiro corte. Após a seleção dos TODs, detectores individuais são avaliados e cortados se apresentarem propriedades estatísticas anormais, como correlação pobre com o modo comum atmosférico, assimetria significativa, curtose excessiva, ou valores RMS anormais na faixa de frequência dominada por ruído branco (10-20 Hz). Cerca de 30% dos detectores são considerados “mortos” e nunca utilizados, enquanto dos 70% restantes, em média 80% são usáveis para cada TOD individual, resultando em um rendimento médio total de aproximadamente 55%.
Finalmente, amostras individuais dentro de cada fluxo de dados de detector são cortadas se forem afetadas por glitches de curta duração causados por raios cósmicos, anomalias de velocidade de varredura, ou amostras próximas a pontos de virada da varredura. O resultado final é um mapa de uma pureza e precisão sem precedentes, onde cada pixel representa uma pequena janela para o passado distante do nosso universo, com uma profundidade mediana de 10 microKelvin por arco-minuto.

Implicações Científicas: Desvendando os Mistérios do Cosmos
O lançamento do ACT DR6 tem implicações profundas e de longo alcance para a cosmologia. Primeiramente, ele fornece o teste mais rigoroso até hoje para o modelo cosmológico padrão, o ΛCDM. Este modelo descreve um universo composto por aproximadamente 5% de matéria bariônica ordinária (átomos), 27% de matéria escura fria (uma forma misteriosa de matéria que não interage com a luz), e 68% de energia escura (uma força ainda mais enigmática que impulsiona a expansão acelerada do universo). Ao medir o espectro de potência angular da CMB — uma representação estatística das flutuações de temperatura e polarização em diferentes escalas angulares — com uma precisão sem precedentes, os cientistas podem verificar se as previsões do modelo correspondem às observações.
O DR6 define um novo “estado da arte” para medições em pequenas escalas angulares, correspondentes a multipolos ℓ > 1800 para temperatura e ℓ > 750 para polarização. Nestas escalas, o ACT supera os dados do satélite Planck da Agência Espacial Europeia (ESA), que dominou a cosmologia de CMB na última década. Qualquer desvio significativo entre os dados do DR6 e as previsões do ΛCDM poderia apontar para a existência de nova física, como partículas exóticas além do Modelo Padrão da física de partículas, modificações na teoria da relatividade geral de Einstein, ou propriedades inesperadas da inflação cósmica, a expansão exponencial que se acredita ter ocorrido nos primeiros instantes após o Big Bang.
Além de testar o modelo padrão, o DR6 é uma ferramenta poderosa para estudar a estrutura em grande escala do universo através do efeito de lente gravitacional. A luz da CMB não viaja livremente pelo espaço; ela é sutilmente desviada pela atração gravitacional da matéria que encontra em seu caminho durante sua jornada de 13,8 bilhões de anos até nós. Este efeito, previsto pela teoria da relatividade geral, distorce a imagem da CMB de maneira característica, criando correlações entre flutuações de temperatura e os padrões de polarização conhecidos como modos E e B.
Ao analisar estas distorções nos mapas do DR6, os cosmólogos podem reconstruir a teia cósmica, a vasta rede de filamentos e aglomerados de matéria escura que permeia o universo. Este mapa tridimensional da distribuição de matéria é complementar aos levantamentos de galáxias, mas tem a vantagem de ser sensível a toda a matéria, não apenas às galáxias luminosas. Ele permite aos cientistas entender melhor como a estrutura cresceu e evoluiu ao longo do tempo cósmico, fornecendo restrições sobre a natureza da matéria escura e da energia escura.
Outra área de grande interesse é o estudo de aglomerados de galáxias através do efeito Sunyaev-Zel’dovich (SZ). Quando os fótons da CMB passam através do gás quente e ionizado presente nos aglomerados de galáxias, eles colidem com elétrons de alta energia e ganham energia através do espalhamento Compton inverso. Isto resulta em uma pequena distorção no espectro da CMB, com uma diminuição da intensidade em frequências mais baixas e um aumento em frequências mais altas. O DR6, com sua alta resolução angular (arcminuto) e sensibilidade, é ideal para detectar milhares desses aglomerados, incluindo alguns dos mais distantes e massivos do universo.
O estudo da população de aglomerados de galáxias fornece restrições independentes sobre parâmetros cosmológicos, incluindo a quantidade de matéria no universo (Ωm), a amplitude das flutuações de densidade (σ8), e a equação de estado da energia escura (w). A contagem de aglomerados em função da massa e do redshift é extremamente sensível ao crescimento da estrutura, que por sua vez depende da natureza da energia escura. Se a energia escura for uma constante cosmológica, como assumido no modelo ΛCDM, ela tem uma equação de estado w = -1. Qualquer desvio deste valor indicaria uma forma mais exótica de energia escura, como a quintessência.
O DR6 também permite estudos detalhados da polarização da CMB, que carrega informações complementares à temperatura. A polarização é gerada pelo espalhamento Thomson de fótons por elétrons na superfície de último espalhamento e pode ser decomposta em dois modos: modos E (gradiente) e modos B (rotacional). Os modos E são gerados pelas mesmas flutuações de densidade que criam as anisotropias de temperatura, enquanto os modos B primordiais seriam uma assinatura direta das ondas gravitacionais geradas durante a inflação cósmica. A detecção destes modos B primordiais é um dos objetivos mais ambiciosos da cosmologia moderna, pois forneceria evidência direta da inflação e mediria a escala de energia na qual ela ocorreu.
Conclusão: O Futuro da Cosmologia de Precisão
O Data Release 6 do Atacama Cosmology Telescope não é apenas um conjunto de dados; é um legado para a comunidade científica global. Ao disponibilizar publicamente seus mapas e produtos de dados através de plataformas como o Legacy Archive for Microwave Background Data Analysis (LAMBDA) da NASA e um atlas web interativo hospedado pela Universidade de Princeton, a colaboração ACT está capacitando cientistas de todo o mundo a explorar o universo de novas maneiras. Este espírito de ciência aberta é fundamental para o progresso da cosmologia, permitindo que pesquisadores independentes verifiquem os resultados, desenvolvam novas análises, e façam descobertas inesperadas.
Este lançamento representa um marco na transição da cosmologia de uma era dominada por missões espaciais, como o Planck, para uma nova era liderada por observatórios terrestres de última geração, como o ACT e seu concorrente, o South Pole Telescope (SPT). Enquanto os satélites têm a vantagem de observar acima da atmosfera, os telescópios terrestres modernos, com seus detectores mais sensíveis e maior capacidade de upgrade, estão agora alcançando e superando a sensibilidade espacial em muitas áreas. Esta mudança de paradigma está acelerando o ritmo das descobertas e reduzindo o custo da cosmologia de precisão.
O DR6 estabelece uma base sólida para futuras descobertas. Os dados continuarão a ser explorados por anos, em busca de assinaturas de inflação cósmica através dos modos B de polarização, da massa dos neutrinos através do efeito de supressão em pequenas escalas, e de possíveis desvios do modelo cosmológico padrão que poderiam indicar nova física. Além disso, a experiência e as técnicas desenvolvidas para o ACT estão pavimentando o caminho para a próxima geração de experimentos de CMB, como o Simons Observatory, já em construção no mesmo local no Atacama, e o ambicioso CMB-S4, que promete mapear o céu com uma sensibilidade ainda maior usando múltiplos telescópios em locais otimizados.
O trabalho meticuloso da equipe do ACT, desde a construção e operação do telescópio no ambiente hostil do Atacama até a complexa análise de centenas de terabytes de dados, nos forneceu a visão mais nítida já obtida do nosso universo em sua infância. Cada pixel nos mapas do DR6 é uma janela para o passado, revelando as condições que existiam quando o cosmos tinha apenas uma fração de sua idade atual. O legado do DR6 será medido pelas descobertas que ele possibilitará nas próximas décadas, aproximando-nos cada vez mais da compreensão completa de nossas origens cósmicas e do destino final do universo.



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