
Cientistas revelam como marés termais, impulsionadas pelo Sol, alimentam os ventos de 400 km/h que envolvem o planeta, uma descoberta que redefine nossa compreensão sobre atmosferas extremas.
Introdução: O Enigma do Gêmeo Infernal da Terra
Vênus, nosso vizinho planetário frequentemente chamado de “gêmeo da Terra” por seu tamanho e massa similares, é um mundo de extremos infernais. Sob um denso cobertor de nuvens de ácido sulfúrico, sua superfície atinge temperaturas de 465°C, capazes de derreter chumbo, e a pressão atmosférica é esmagadora, mais de 90 vezes a da Terra. No entanto, um dos maiores enigmas de Vênus não está em sua superfície, mas sim flutuando bem acima dela. A cerca de 70 quilômetros de altitude, na camada superior de nuvens, a atmosfera venusiana se move a velocidades alucinantes, completando uma volta ao redor do planeta em apenas quatro dias terrestres. Em contraste, o próprio planeta leva 243 dias para girar uma única vez sobre seu eixo, a rotação mais lenta de todo o Sistema Solar. Esse fenômeno, conhecido como super-rotação atmosférica, cria ventos que ultrapassam os 400 km/h, mais rápidos que os furacões mais violentos da Terra.
Por décadas, a força motriz por trás dessa super-rotação tem sido um dos quebra-cabeças mais persistentes da ciência planetária. Como a atmosfera consegue ganhar e manter um momento angular tão imenso, superando drasticamente a velocidade de rotação do planeta sólido abaixo dela? As teorias apontavam para uma complexa interação de ondas atmosféricas e circulação de calor, mas os detalhes permaneciam obscuros. Agora, um estudo revolucionário, publicado na prestigiada revista AGU Advances, lança uma nova luz sobre este mistério. Liderada por pesquisadores da Universidade de Ciência e Tecnologia da China, a equipe analisou 16 anos de dados coletados pelas missões Venus Express, da Agência Espacial Europeia (ESA), e Akatsuki, da Agência de Exploração Aeroespacial do Japão (JAXA). Combinando essas observações com simulações computacionais avançadas, os cientistas conseguiram, pela primeira vez, mapear em detalhes a estrutura das marés termais na atmosfera de Vênus e identificar o principal motor da super-rotação: a maré termal diurna, uma gigantesca onda de pressão gerada pelo aquecimento solar diário.
Esta descoberta não apenas soluciona uma questão fundamental sobre Vênus, mas também aprimora nossa compreensão sobre como as atmosferas de planetas que orbitam próximos às suas estrelas evoluem. O estudo revela um mecanismo surpreendentemente eficiente de transporte de energia que acelera a atmosfera equatorial, oferecendo um novo paradigma para entender climas extremos em nosso Sistema Solar e além, em exoplanetas que podem enfrentar condições semelhantes. A pesquisa, intitulada “Contribution of Thermal Tides to Venus Upper Cloud-Layer Superrotation”, representa um marco, transformando anos de dados brutos em uma imagem clara e coesa de um dos sistemas climáticos mais dinâmicos que conhecemos.
O Balé Cósmico das Marés Termais: O Motor de Vênus
Para entender a super-rotação de Vênus, é crucial mergulhar no conceito de marés atmosféricas. Diferente das marés oceânicas da Terra, que são majoritariamente causadas pela atração gravitacional da Lua e do Sol, as marés atmosféricas em Vênus são termais. Elas são geradas pelo ciclo diário de aquecimento e resfriamento. Durante o longo dia venusiano, que dura 117 dias terrestres, a radiação solar intensa aquece a espessa camada de nuvens que absorve grande parte da energia. Esse aquecimento não é uniforme; ele cria uma vasta onda de pressão atmosférica que se propaga pelo planeta. Essa onda, por sua vez, transporta energia e momento angular (a quantidade de movimento de rotação) de uma região para outra, funcionando como um motor planetário.
Os cientistas planetários há muito suspeitavam que essas marés termais eram a chave para a super-rotação, mas não estava claro qual tipo de maré era a principal responsável. As duas candidatas principais eram a maré semidiurna (que possui dois picos e dois vales de pressão ao longo de um dia venusiano) e a maré diurna (com um pico e um vale). Modelos anteriores e algumas observações sugeriam que a maré semidiurna, com sua maior amplitude de temperatura em certas regiões, seria a força dominante. No entanto, esses modelos careciam de dados abrangentes, especialmente do hemisfério sul do planeta e de uma ampla gama de altitudes. A maioria das observações anteriores, como as da sonda Pioneer Venus, focava-se no hemisfério norte.
É aqui que a nova pesquisa faz sua contribuição monumental. Utilizando uma técnica chamada radioccultação, os pesquisadores analisaram como os sinais de rádio das sondas Venus Express e Akatsuki eram distorcidos ao passar pela atmosfera de Vênus antes de chegar à Terra. Essa técnica permitiu mapear a estrutura de temperatura da atmosfera em diferentes altitudes (entre 50 e 90 km) e locais, com uma precisão sem precedentes. Com 16 anos de dados combinados, cobrindo ambos os hemisférios, a equipe criou o mapa mais completo já feito das marés termais venusianas. O estudo compilou 1.016 perfis de temperatura, superando uma lacuna de dados de dois anos (entre 2014 e 2016) e aplicando correções para garantir a precisão.
Os resultados foram surpreendentes e contrariaram as expectativas. A análise revelou que, embora a maré semidiurna seja forte, é a maré diurna a verdadeira protagonista na manutenção da super-rotação no topo das nuvens. A simulação computacional, realizada com o Venus Planetary Climate Model (PCM) e alimentada por esses novos dados, mostrou como a maré diurna funciona como um motor atmosférico. Ela empurra o momento angular na direção da rotação da atmosfera, acelerando os ventos equatoriais. O estudo detalha que o fluxo de momento angular induzido pela maré diurna domina em uma camada crucial, cerca de 5 km acima e abaixo do topo das nuvens (aproximadamente 70 km de altitude). É nesta região que a aceleração é mais intensa, sustentando os ventos de super-rotação contra as forças de atrito que, de outra forma, os desacelerariam. O modelo indica que a divergência do fluxo de momento angular, que quantifica a força da onda sobre o fluxo zonal, é a principal responsável por impulsionar a super-rotação equatorial.

Implicações Científicas: De Vênus aos Exoplanetas Distantes
A confirmação do papel dominante da maré diurna na super-rotação de Vênus tem implicações profundas que vão muito além de nosso vizinho planetário. Primeiramente, ela resolve uma longa controvérsia na ciência planetária e fornece um mecanismo físico claro e validado por observações para um dos fenômenos atmosféricos mais extremos do Sistema Solar. O estudo demonstra a importância de se ter dados de longo prazo e cobertura global para entender sistemas climáticos complexos. As missões Venus Express e Akatsuki, operando em conjunto por anos, foram essenciais para construir um quadro coeso que estudos anteriores, com dados mais limitados, não conseguiram formar.
Além disso, a descoberta oferece um laboratório natural para estudar um processo que pode ser comum em muitos exoplanetas. Planetas que orbitam muito perto de suas estrelas, conhecidos como “Júpiteres quentes” ou “Super-Terras”, frequentemente entram em rotação sincronizada (ou tidally locked), mantendo sempre a mesma face voltada para a estrela. Nessas condições, o aquecimento solar extremo em um lado e o frio perpétuo no outro podem gerar marés termais ainda mais poderosas do que as de Vênus. Compreender como essas marés transportam calor e momento pode ser a chave para determinar se tais planetas possuem atmosferas estáveis ou se são capazes de distribuir calor de forma a permitir a existência de condições habitáveis em alguma região, como na zona do terminador (a linha entre o dia e a noite).
Vênus, portanto, atua como um elo crucial entre os planetas terrestres que conhecemos, como a Terra e Marte, e esses mundos exóticos e distantes. O mecanismo de aceleração pela maré diurna, agora detalhado, pode ser incorporado em modelos climáticos de exoplanetas para prever seus padrões de vento e clima com maior precisão. Isso ajudará os astrônomos a interpretar futuras observações de telescópios como o James Webb, que está começando a analisar as atmosferas de planetas fora do nosso Sistema Solar. A pesquisa sobre a super-rotação venusiana não é apenas sobre Vênus; é sobre entender as leis fundamentais que governam as atmosferas em todo o universo. A validação do modelo venusiano com dados reais confere maior confiança às simulações de climas alienígenas, que, por enquanto, não podem ser verificadas in situ.
Um Olhar Detalhado sobre as Missões e a Tecnologia
O sucesso desta pesquisa é um testemunho do poder da colaboração internacional e da longevidade das missões espaciais. A sonda Venus Express (VEX), da ESA, operou de 2006 a 2014, realizando um estudo detalhado da atmosfera e do plasma de Vênus. Sua órbita polar permitiu uma cobertura global, incluindo as regiões polares, que são cruciais para entender a circulação atmosférica geral. Um de seus instrumentos chave foi o VeRa (Venus Radio Science Experiment), que executou as medições de radioccultação que formaram a base deste estudo.
Após o fim da missão VEX, a sonda Akatsuki (que significa “amanhecer” em japonês), da JAXA, chegou a Vênus em 2015, após uma primeira tentativa de inserção orbital ter falhado em 2010. A Akatsuki foi projetada especificamente para estudar a dinâmica da atmosfera venusiana. Sua órbita equatorial é ideal para monitorar a evolução das nuvens e das ondas atmosféricas. A sonda também está equipada para realizar experimentos de radioccultação, continuando o trabalho da Venus Express e estendendo a linha do tempo das observações por mais anos. Foi a combinação dos dados dessas duas missões, com suas órbitas e capacidades complementares, que permitiu a construção de um conjunto de dados tão robusto e abrangente.
A técnica de radioccultação é engenhosa em sua simplicidade e poder. Conforme a espaçonave passa por trás de Vênus do ponto de vista da Terra, seus sinais de rádio viajam através da atmosfera do planeta. A densidade, temperatura e pressão da atmosfera alteram a trajetória e a frequência do sinal de rádio de maneiras sutis. Ao medir precisamente essas alterações, os cientistas podem reconstruir perfis verticais detalhados da atmosfera. Repetindo esse processo em diferentes locais e horários, é possível construir um mapa tridimensional da estrutura atmosférica e de sua evolução ao longo do tempo.

Conclusão: Um Novo Capítulo na Exploração de Vênus e Além
O estudo liderado por Dexin Lai e seus colaboradores marca um ponto de virada em nossa compreensão da atmosfera de Vênus. Ao identificar a maré termal diurna como o principal motor da super-rotação no topo das nuvens, a pesquisa soluciona um enigma de décadas e revela a beleza e a complexidade da física atmosférica em ação em um ambiente extremo. A combinação de 16 anos de observações detalhadas das missões Venus Express e Akatsuki com simulações de ponta no Venus Planetary Climate Model demonstrou ser uma abordagem poderosa, estabelecendo um novo padrão para a investigação planetária.
O futuro da exploração de Vênus é promissor. Com novas missões planejadas pela NASA (as missões DAVINCI e VERITAS) e pela ESA (a missão EnVision) para as próximas décadas, estamos prestes a obter uma visão ainda mais detalhada da atmosfera, da superfície e do interior do planeta. A missão DAVINCI (Deep Atmosphere Venus Investigation of Noble gases, Chemistry, and Imaging) incluirá uma sonda que mergulhará através da atmosfera, medindo sua composição diretamente. VERITAS (Venus Emissivity, Radio Science, InSAR, Topography, and Spectroscopy) mapeará a superfície do planeta em alta resolução para entender sua história geológica. E a EnVision, da ESA, investigará as ligações entre a atividade geológica e a atmosfera. Essas missões fornecerão dados cruciais para refinar ainda mais os modelos climáticos e testar as previsões do estudo atual em outras camadas da atmosfera. Questões importantes permanecem: como a super-rotação se conecta com a atmosfera mais profunda, abaixo das nuvens? E qual o papel de outras ondas atmosféricas, como as ondas de Rossby, no balanço geral de momento do planeta?
Ao desvendar o segredo da super-rotação, não estamos apenas aprendendo sobre Vênus. Estamos aprimorando nossas ferramentas para explorar e entender a vasta diversidade de planetas que existem na galáxia. Vênus, o planeta que leva o nome da deusa romana do amor e da beleza, continua a nos cativar com sua natureza violenta e misteriosa, lembrando-nos de que ainda há muito a descobrir em nosso próprio quintal cósmico e que as respostas para os mistérios de mundos distantes podem, por vezes, ser encontradas muito mais perto de casa.

Referências
1.Lai, D., Lebonnois, S., & Li, T. (2025). Contribution of thermal tides to Venus upper cloud-layer superrotation. AGU Advances, 6, e2025AV001880. https://doi.org/10.1029/2025AV001880


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