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Será Que A Água É Essencial Para A Vida no Universo?

A busca incessante por vida além da Terra acaba de ganhar uma reviravolta emocionante, com a proposta de uma nova classe de planetas potencialmente habitáveis: exoplanetas rochosos, quentes e com pouca ou nenhuma água, mas que abrigam uma solução inovadora para a vida: líquidos iônicos em suas superfícies. Esta pesquisa inovadora, publicada por Rachana Agrawal, Sara Seager, Iaroslav Iakubivskyi e uma equipe de colaboradores renomados, desafia a noção tradicional de que a água líquida é o único solvente fundamental para a vida, expandindo drasticamente o conceito de habitabilidade planetária.

A Mudança de Paradigma na Astrobiologia: Além da Água Líquida

Durante décadas, a busca por exoplanetas habitáveis tem sido predominantemente focada em mundos que poderiam sustentar grandes reservatórios de água líquida em suas superfícies, envoltos por uma atmosfera de suporte, um modelo diretamente derivado da vida terrestre. Este foco levou à definição da famosa “Zona Habitável” – a distância ideal de uma estrela onde as temperaturas permitem que a água permaneça líquida. Contudo, com a proliferação de novos telescópios e a descoberta de milhares de exoplanetas, incluindo uma incrível diversidade em massa, raio e órbita, os cientistas estão sendo inspirados a olhar para além dos ambientes semelhantes à Terra. Muitos dos exoplanetas atualmente em estudo são considerados inóspitos precisamente porque são demasiado quentes para suportar água líquida em suas superfícies.

A pesquisa tradicional na astrobiologia sempre considerou o líquido como um requisito fundamental para a vida, mas a questão crucial de saber se esse líquido deve ser necessariamente água tem permanecido em aberto. É aqui que entra a audaciosa proposta desta equipe de pesquisa: planetas quentes e com atmosfera fina poderiam, ainda assim, sustentar vida através de líquidos iônicos.

O Que São Líquidos Iônicos e Por Que São Tão Promissores?

Os líquidos iônicos são uma classe de substâncias que, embora não tenham sido previamente consideradas como substâncias de ocorrência natural no contexto da ciência planetária, possuem propriedades extraordinárias que as tornam candidatas ideais para a vida em ambientes extremos. Basicamente, são sais em estado líquido, tipicamente compostos por íons em vez de moléculas neutras. A sua característica mais distintiva e relevante para a habitabilidade é a sua pressão de vapor insignificante. Isso significa que eles permanecem líquidos em condições quentes e de baixa pressão, até mesmo em um vácuo, onde a água líquida evaporaria ou congelaria.

Ao contrário dos líquidos convencionais, os líquidos iônicos geralmente não possuem um ponto triplo e, em vez de ferver, eles se decompõem na fronteira da fase gasosa. Muitos deles têm pressões de vapor tão baixas quanto 10⁻¹⁵ bar a 300 K (aproximadamente 27 °C), tornando-os efetivamente não voláteis mesmo em condições de vácuo. Essa estabilidade sob vácuo sugere uma possível persistência em planetas com atmosferas negligenciáveis, desde que protegidos por campos magnéticos ou fendas rochosas contra a radiação cósmica severa.

A definição formal de líquidos iônicos os descreve como sais com temperaturas de fusão abaixo de 100 °C. Embora existam milhares de líquidos iônicos conhecidos e milhões provavelmente aguardando descoberta, sua aplicação tem sido predominantemente em áreas como baterias, catálise industrial e processamento de biopolímeros. Apenas um exemplo conhecido de formação natural de um líquido iônico na Terra foi documentado, envolvendo a desintoxicação do veneno de uma formiga-lava (Solenopsis invicta) por uma espécie rival, a formiga-louca-tawny (Nylanderia fulva), onde o ácido fórmico da formiga-louca se mistura com o veneno da formiga-lava, protonando os átomos de nitrogênio e formando um líquido iônico viscoso não tóxico. Esta nova pesquisa é a primeira a considerar a formação de líquidos iônicos no contexto planetário.

A Inovação da Pesquisa: Formando Líquidos Iônicos a Partir de Materiais Planetários

O cerne desta proposta revolucionária reside na demonstração experimental de que líquidos iônicos podem se formar a partir de materiais planetários comuns. Especificamente, os cientistas descobriram que o ácido sulfúrico combinado com compostos orgânicos contendo nitrogênio pode dar origem a esses líquidos.

Os experimentos em laboratório foram meticulosos e reproduziram condições que poderiam ser encontradas em exoplanetas rochosos. Os pesquisadores formaram líquidos iônicos dissolvendo compostos orgânicos em ácido sulfúrico concentrado, seguido pela evaporação do excesso de ácido sulfúrico sob baixa pressão (10⁻⁵ bar) e temperaturas quentes (100 ± 5 °C). Para o procedimento de evaporação, utilizaram uma câmara de vácuo personalizada. É importante ressaltar que outras combinações de temperaturas e pressões também resultaram na formação de líquidos iônicos, indicando a robustez do processo.

A equipe demonstrou a formação de líquidos iônicos com uma ampla variedade de moléculas orgânicas que contêm um átomo de nitrogênio, incluindo aminoácidos (como glicina, histidina, alanina), aminas alifáticas, bases de ácidos nucleicos e outros heterocíclicos aromáticos. Uma vez dissolvidas em ácido sulfúrico concentrado, as moléculas orgânicas contendo nitrogênio se protonam, adquirindo uma carga positiva estável. Isso sugere que qualquer molécula orgânica nitrogenada que seja estável e solúvel em ácido sulfúrico concentrado pode formar líquidos iônicos após a evaporação do excesso de ácido sulfúrico.

Os pesquisadores destacaram os líquidos iônicos formados com glicina, histidina, alanina, colina e tetrabutilamônio. Eles também testaram misturas complexas, incluindo uma mistura de glicina e timina, e outra de glicina, timina, ácido esteárico, parafina e naftaleno. Descobriram que, enquanto os orgânicos carregados positivamente estivessem presentes, os líquidos iônicos podiam se formar a partir de misturas complexas de diversos compostos, incluindo hidrocarbonetos, ácidos carboxílicos, açúcares (sacarose) e outras substâncias químicas. Isso é crucial porque em ambientes planetários, as soluções orgânicas seriam impuras, reativas e altamente complexas, e o estudo mostrou que isso não impede a formação de líquidos iônicos. Além disso, a concentração de ácido sulfúrico (ou seja, diluição em água), a concentração de orgânicos em ácido sulfúrico e o volume total da mistura inicial não inibiram a formação de líquidos iônicos.

Para simular condições planetárias mais realistas, os cientistas utilizaram rocha basáltica como plataforma para a formação de líquidos iônicos. Uma mistura de orgânicos contendo nitrogênio e ácido sulfúrico concentrado foi aplicada à superfície de rochas basálticas sob diversas condições, incluindo 80 °C e 10⁻⁵ bar, bem como temperatura e pressão ambiente, tanto em ar seco quanto em umidade ambiente. Os líquidos iônicos formados na superfície dessas rochas se mostraram estáveis a reatividade adicional. Isso é demonstrado na Figura 2 do artigo, onde uma rocha com glicina e ácido sulfúrico formou um líquido iônico estável, enquanto em uma rocha sem glicina, o ácido sulfúrico evaporou completamente.

A composição desses líquidos iônicos de hidrogenossulfato foi confirmada por meio de técnicas avançadas de espectroscopia, como a espectroscopia de infravermelho com transformada de Fourier (FTIR) e a espectroscopia de Ressonância Magnética Nuclear de ¹H (NMR). Essas análises confirmaram a estrutura iônica e a presença dos componentes catiônicos e aniônicos esperados. A acidez dos líquidos iônicos selecionados foi medida e, embora menor que a do ácido sulfúrico concentrado, ainda se mostrou ácida, com valores de número aceitador (AN) consistentes com outros líquidos iônicos de hidrogenossulfato. A natureza equimolar dos líquidos iônicos formados, resultante da evaporação do excesso de ácido sulfúrico, também foi corroborada por experimentos em que os líquidos foram preparados diretamente com quantidades molares iguais dos componentes.

A estabilidade térmica desses líquidos iônicos é notável, com temperaturas de decomposição variando de 180 a 379 °C, dependendo da composição específica. Essa resiliência a altas temperaturas é um fator chave para sua viabilidade em ambientes planetários quentes.

Os Ingredientes Essenciais: Ácido Sulfúrico e Compostos Orgânicos

Para que os líquidos iônicos se formem em um exoplaneta rochoso, são necessários dois componentes principais e um ambiente adequado para sua interação: ácido sulfúrico e compostos orgânicos contendo nitrogênio.

  1. Ácido Sulfúrico: O estudo aponta que o ácido sulfúrico pode ser gerado em planetas de diversas maneiras. O mecanismo de produção principal é a reação geral de oxidação de SO₂ e H₂O para formar H₂SO₄. Em planetas vulcanicamente ativos, SO₂ e vapor de H₂O podem ser exsudados do manto. A oxidação de SO₂ a SO₃ é o passo crítico, exigindo espécies reativas de oxigênio (como O, O₂, O₃ ou H₂O₂) para superar a alta barreira de energia de ativação. Em planetas, o oxigênio necessário pode ser fornecido pela fotodissociação UV de moléculas que contêm oxigênio, como CO₂ (também exsudado vulcanicamente), H₂O e outras.
    • Vênus como Exemplo: Vênus é um excelente exemplo de um planeta que, apesar de sua atmosfera dominada por CO₂ e ser um ambiente com hidrogênio limitado, possui abundantes nuvens densas de ácido sulfúrico. Em Vênus, a oxidação de SO₂ a SO₃, impulsionada pela radiação UV, seguida pela reação com a água atmosférica, produz essas nuvens. Um processo análogo ocorre na estratosfera da Terra, onde o OH gerado fotoquimicamente oxida o SO₂ para formar H₂SO₄.
    • Formação em Superfície: O ácido sulfúrico também pode se formar na superfície quando o SO₂ reage com rochas basálticas ou máficas. Na Terra, rochas contendo Fe₂O₃ catalisam essa reação em ambientes vulcânicos ricos em SO₂, como em Kīlauea, no Havaí. Embora a O₂ atmosférica provavelmente reponha o oxigênio da rede no catalisador de Fe₂O₃ na Terra, um mecanismo semelhante poderia operar em exoplanetas sem O₂, possivelmente envolvendo NO₂ vulcânico.
    • Em Corpos Gélidos: A presença de ácido sulfúrico também foi observada em Europa, uma lua de Júpiter, onde se forma através da oxidação radiolítica do enxofre superficial.
    • Disponibilidade de Hidrogênio: Embora a disponibilidade de hidrogênio possa parecer um problema em um planeta com pouca água, Vênus serve como um contra-exemplo. Tanto o SO₂ quanto o H₂O são desgasificados por vulcões em Vênus, e a radiação UV impulsiona sua conversão em H₂SO₄. A pesquisa sugere que o SO₂ pode dominar a fração molar sobre a água em gases vulcânicos venusianos, sublinhando que o ácido sulfúrico pode plausivelmente se formar mesmo em ambientes com hidrogênio limitado.
    • Persistência na Superfície: O ácido sulfúrico é líquido em uma ampla gama de condições de temperatura e pressão. A questão chave para a formação de líquidos iônicos é se o ácido sulfúrico líquido pode existir na superfície planetária por tempo suficiente para dissolver compostos orgânicos e depois evaporar eficientemente para deixar um líquido iônico. A resposta é afirmativa: a formação e a evaporação são viáveis em uma ampla gama de condições, desde baixas pressões e temperaturas (aproximadamente 300 K a 10⁻⁶ atm) até pressões e temperaturas mais altas (aproximadamente 360 a 470 K a 10⁻² atm, comparáveis às condições marcianas). O limite superior de temperatura de 470 K é adotado porque muitos dos líquidos iônicos estudados começam a se degradar além desse ponto.
    • Evaporação do Excesso de Ácido Sulfúrico: O estudo enfatiza que, para a formação do líquido iônico, o excesso de ácido sulfúrico deve evaporar completamente. Os cientistas estimam que o ácido sulfúrico concentrado pode evaporar em cerca de um mês a temperaturas aproximadamente 100 K abaixo do seu ponto de ebulição. Experimentos estendidos em rochas basálticas mostraram que, mesmo em condições de temperatura, pressão e umidade ambiente, os líquidos iônicos podem se formar uma vez que o ácido sulfúrico dissolve o orgânico contendo nitrogênio – desde que o excesso de ácido sulfúrico se dissipe por evaporação, dispersão em poros da rocha ou reação com a rocha.
  2. Compostos Orgânicos Superficiais: Para que um líquido iônico se forme, o ácido sulfúrico concentrado deve dissolver orgânicos contendo nitrogênio. Isso significa que o planeta deve ter bolsas de material orgânico em sua superfície. A boa notícia é que orgânicos foram detectados em praticamente todo corpo com superfície sólida onde foram especificamente procurados em nosso próprio Sistema Solar, incluindo Mercúrio, a Lua, Marte, Ceres, Ganimedes e Calisto, Encélado, Titã, Plutão e Caronte, cometas e asteroides. Embora as concentrações exatas não sejam sempre medidas, a própria detecção implica depósitos locais substanciais.
    • Exemplos no Sistema Solar: Em Mercúrio, uma camada de aproximadamente 10 cm de profundidade de orgânicos cobre os depósitos de gelo de água nas crateras polares. O cometa 67P tem um teor de carbono orgânico de cerca de 45% em peso em partículas de poeira, mostrando que, em microescala, a matéria orgânica pode ser altamente concentrada. Em meteoritos, a matéria orgânica pode ocorrer em depósitos globulares altamente concentrados. Isso confirma a existência de depósitos orgânicos densos que poderiam ser as fontes dos componentes catiônicos para os líquidos iônicos.
    • Origem dos Cátions: Os cátions dos líquidos iônicos de hidrogenossulfato derivam de compostos orgânicos encontrados em meteoritos, superfícies de asteroides e outras partes, também considerados em cenários de química pré-biótica.

Ampliando o Conceito de Habitabilidade: Além da “Zona Cachos Dourados”

Esta pesquisa redefine fundamentalmente o que significa um planeta habitável. Se os líquidos iônicos podem atuar como solventes para a vida, então a gama de condições planetárias que poderiam sustentar a vida se expande dramaticamente para incluir mundos que antes eram descartados como inóspitos. Isso significa que Super Terras quentes e sem água superficial, com atmosferas finas, poderiam ter líquido superficial e, portanto, o potencial de serem habitáveis.

A existência de líquidos iônicos em superfícies planetárias é plausível mesmo em mundos sem atmosfera, devido à sua pressão de vapor extremamente baixa. Uma pequena gota de muitos líquidos iônicos não “seca”, mesmo sob vácuo em temperaturas semelhantes às da Terra. No entanto, a exposição a ambientes espaciais severos, como impactos de micrometeoritos, plasma de vento solar, UV e radiação de alta energia, poderia alterar as propriedades químicas e físicas da superfície planetária desprotegida. Felizmente, o estudo sugere que a vida em líquidos iônicos poderia encontrar refúgio:

  • Proteção Subsuperficial: A profundidade de penetração do intemperismo espacial é limitada. Embora a ejeção de íons afete as 2 a 3 camadas atômicas mais superficiais e prótons de altíssima energia possam atingir 100 nm, os raios cósmicos galácticos com energia de GeV podem penetrar até 1 metro. Isso significa que qualquer líquido iônico subsuperficial, mesmo em profundidades rasas, poderia ser protegido da maioria dos processos de intemperismo espacial severos.
  • Campos Magnéticos: Um campo magnético protetor ajudaria a blindar a superfície.
  • Ambientes Sombreados ou Fendas: Proteção adicional poderia vir de ambientes subsuperficiais, regiões sombrias ou fendas onde os líquidos iônicos podem ser protegidos da exposição direta. Por exemplo, líquidos iônicos poderiam sobreviver no lado escuro de um planeta com rotação síncrona, próximo a fontes vulcânicas quentes, assumindo que o planeta mantenha um campo magnético.

A questão da sobrevivência a longo prazo dos líquidos iônicos, particularmente sua resistência à radiação UV e ao bombardeio de partículas energéticas, permanece uma questão em aberto e um tópico para estudos futuros.

O Suporte à Bioquímica e as Implicações para a Vida

A proposta de que os líquidos iônicos possam sustentar a vida é reforçada por evidências de que os próprios blocos construtores da bioquímica baseada em água, como DNA e proteínas (enzimas), são frequentemente estáveis e funcionais na presença de líquidos iônicos. Alguns até funcionam em líquidos iônicos puros desidratados. Além disso, muitos líquidos iônicos não são tóxicos e são quimicamente benignos e não reativos em contato com as substâncias bioquímicas da vida terrestre.

Os componentes catiônicos de líquidos iônicos, como aminas quaternárias e outros compostos orgânicos nitrogenados carregados, são prontamente produzidos pela vida. Os componentes aniônicos, como o H₂SO₄, podem estar presentes no ambiente planetário certo. Os líquidos iônicos são polares e podem dissolver sais e polímeros complexos, o que atende a alguns dos critérios adequados para um solvente para a vida. Muitas espécies na Terra usam ou produzem compostos que poderiam ser usados para fazer líquidos iônicos, como aminas ou açúcares, como um meio de sobreviver à dessecação. Mais ainda, como os líquidos iônicos não evaporam, o risco de dessecação permanente para um organismo que os utilize como solvente não existe, restando apenas o risco de dano mecânico como causa de perda do solvente para o mundo exterior.

A Ausência de Líquidos Iônicos Conhecidos em Nosso Sistema Solar e o Futuro da Detecção

Atualmente, não há corpos conhecidos em nosso próprio Sistema Solar que se saiba abrigar líquidos iônicos. Io, por exemplo, não possui ácido sulfúrico líquido, provavelmente por ser severamente deficiente em hidrogênio e muito frio para o ácido sulfúrico líquido. Mercúrio não tem vulcões ativos, o que impede a formação atual de H₂SO₄. No entanto, a lua Europa possui ácido sulfúrico sólido em sua superfície, o que demonstra que o H₂SO₄ não sublima mesmo a 10⁻¹² atm em temperaturas glaciais. Esta ausência em nosso sistema solar não invalida a proposta, mas sublinha a raridade das condições ideais para a formação de líquidos iônicos da maneira como são propostos neste estudo.

A detecção de líquidos iônicos em exoplanetas é um desafio, especialmente se eles ocorrerem apenas em bolsões isolados na superfície, limitados pela quantidade de ingredientes de entrada, como ácido sulfúrico e orgânicos. Portanto, é provável que o líquido iônico em si não seja uma característica dominante da superfície planetária e, consequentemente, seja atualmente indetectável.

No entanto, se existirem grandes reservatórios de líquidos iônicos na superfície, futuros telescópios com capacidade de resolver espacialmente a superfície durante o ingresso e egresso de eclipses secundários podem ser capazes de detectar o grupo sulfato através dos espectros de emissão do planeta. Além disso, se a vida permeia a superfície, seus pigmentos poderiam mostrar uma assinatura em luz refletida, como a “borda vermelha” da vegetação terrestre. A própria vida poderia gerar gases residuais da exploração de gradientes redox químicos no ambiente. Qualquer gás se difundiria para cima e seria fotodissociado, com átomos escapando do planeta. É possível que um poderoso telescópio UV possa identificar tal exosfera com proporções incomuns de átomos que poderiam ser exploradas como um sinal de vida. Isso oferece novas e empolgantes avenidas para a busca de bioassinaturas.

Contexto Maior da Habitabilidade no Sistema Solar

A compreensão da humanidade sobre mundos habitáveis expandiu-se dramaticamente nas últimas décadas. Agora sabemos que várias luas geladas de Júpiter e Saturno, como Europa, mostram forte evidência de oceanos salgados subterrâneos globais. A missão Europa Clipper e Jupiter Icy Moons Explorer estão a caminho para explorar Europa. Titã, a única entidade do Sistema Solar além da Terra com líquidos superficiais persistentes, possui lagos de metano e etano, e a missão Dragonfly está em desenvolvimento para explorar sua superfície e atmosfera. Além disso, Vênus tem gotículas líquidas de ácido sulfúrico em suas camadas de nuvens, e novas pesquisas de laboratório mostram que um subconjunto de moléculas biologicamente relevantes permanece estável em ácido sulfúrico concentrado, abrindo novas portas para considerar a vida nas camadas temperadas da atmosfera de Vênus.

Embora a capacidade de observar e caracterizar totalmente exoplanetas terrestres com condições semelhantes às da Terra ainda seja limitada pela tecnologia atual, esta pesquisa sobre líquidos iônicos nos motiva a explorar caminhos não tradicionais para a habitabilidade. A diversidade de ambientes em nosso Sistema Solar e o crescente catálogo de exoplanetas nos inspiram a considerar a vida em ambientes muito diferentes dos da Terra. Portanto, os pesquisadores adotam um conjunto mais geral de requisitos básicos para a vida: um solvente líquido, temperaturas adequadas para ligações covalentes (para que moléculas complexas possam se formar) e uma fonte de energia. Os líquidos iônicos se encaixam perfeitamente nesse novo quadro.

Metodologia Rigorosa para uma Descoberta Audaciosa

Para garantir a validade de suas descobertas, a equipe empregou uma série de métodos científicos rigorosos.

  • Materiais: Os produtos químicos utilizados, como ácido sulfúrico e uma vasta gama de aminoácidos e outras moléculas nitrogenadas, foram adquiridos de fornecedores confiáveis. As amostras de rocha basáltica também foram cuidadosamente selecionadas.
  • Preparação de Líquidos Iônicos: Para formar os líquidos iônicos equimolares, os pesquisadores misturaram moles aproximadamente iguais do composto orgânico e ácido sulfúrico concentrado (98% p/p). Adicionaram cerca de 5% de H₂SO₄ extra para garantir a dissolução completa do orgânico, incubando a mistura em um banho de areia a 80 ± 5 °C por 12 a 24 horas. Após a dissolução, o excesso de ácido sulfúrico foi evaporado em um sistema evaporador de baixa pressão personalizado (100 ± 5 °C e 10⁻⁵ bar). O tempo necessário para a dissolução e evaporação varia, mas o resultado foi um líquido iônico altamente viscoso. Os pesquisadores enfatizam que as concentrações iniciais de orgânicos, as temperaturas e pressões exatas de evaporação e as escalas de tempo podem ser ampliadas; o que importa é a evaporação completa do excesso de ácido sulfúrico concentrado. É importante ressaltar que os líquidos iônicos equimolares podem se formar mesmo à temperatura e pressão ambiente, na situação em que não há excesso de ácido sulfúrico a ser evaporado. Embora o laboratório otimize a eficiência usando excesso de ácido sulfúrico para ajudar na dissolução e evaporando na pressão mínima do sistema de bombeamento, a conclusão subjacente é que as concentrações iniciais não são críticas.
  • Espectroscopia de ¹H NMR: Esta técnica foi utilizada para confirmar a estrutura dos líquidos iônicos As amostras foram preparadas e analisadas a 80 °C, identificando os prótons característicos das espécies catiônicas e aniônicas, confirmando a identidade do líquido iônico.
  • Determinação do Número Aceitador (AN): O método do Número Aceitador de Gutmann Beckett foi empregado para determinar a acidez de Lewis dos líquidos iônicos. Esta medida quantitativa da acidez da solução, determinada pelo deslocamento químico do ³¹P NMR de óxido de trietilfosfina (TEPO) interagindo com moléculas de ácido na solução, confirmou que os líquidos iônicos são ácidos, embora menos que o ácido sulfúrico concentrado.
  • Espectroscopia FTIR: Espectros infravermelhos dos líquidos iônicos, dos orgânicos e do H₂SO₄ foram medidos para caracterizar as ligações químicas presentes. Os resultados confirmaram a composição do líquido iônico de hidrogenossulfato, distinguindo-o de seus componentes individuais.
  • Análise Termogravimétrica (TGA): O método TGA foi utilizado para determinar a temperatura de início da decomposição térmica dos líquidos iônicos selecionados, confirmando sua estabilidade a altas temperaturas.

Conclusão: Um Novo Capítulo na Astrobiologia

Em resumo, os líquidos iônicos podem existir como líquidos estáveis sob condições de superfície que são muito quentes ou de baixa pressão para a persistência da água líquida. Isso inclui planetas quentes com atmosferas finas e, possivelmente, até mesmo corpos sem atmosfera, onde a pressão de vapor extremamente baixa dos líquidos iônicos pode impedir sua evaporação, desde que protegidos da radiação UV e cósmica severa.

A capacidade dos líquidos iônicos de se formar e permanecer estável nesses ambientes expande a gama de condições planetárias onde a vida poderia potencialmente surgir. A formação de líquidos iônicos a partir de ácido sulfúrico vulcânico e orgânicos de superfície – ambos observados em laboratório e agora esperados em alguns corpos rochosos – introduz uma nova classe de planetas potencialmente portadores de líquido. Esta descoberta significa um significativo alargamento do conceito de habitabilidade planetária para além do paradigma tradicional baseado na água.

Esta pesquisa abre um novo e emocionante capítulo na astrobiologia, incentivando-nos a procurar vida em lugares onde nunca pensamos ser possível. Em vez de descartar exoplanetas que não se encaixam em nosso modelo de “Terra 2.0”, agora temos uma ferramenta conceitual para considerar a habitabilidade de mundos radicalmente diferentes. A busca por vida extraterrestre acaba de ficar muito mais interessante.

Sérgio Sacani

Formado em geofísica pelo IAG da USP, mestre em engenharia do petróleo pela UNICAMP e doutor em geociências pela UNICAMP. Sérgio está à frente do Space Today, o maior canal de notícias sobre astronomia do Brasil.

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