fbpx

Turbulência Supersônica Primordial Fragmenta Nuvens Formadoras de Estrelas

Simulações cosmológicas com o código GIZMO revelam Mach 5,2 e núcleos de 8 M⊙, baixando a massa das primeiras estrelas

Introdução

A formação das primeiras estrelas do Universo – as chamadas estrelas de População III – é um dos temas mais desafiadores da astrofísica moderna. Esses astros nasceram quando o cosmos ainda era jovem, antes mesmo de existirem elementos pesados, e iluminaram a “Idade das Trevas” cósmica. Entender como nuvens de gás primordial se condensaram e colapsaram para gerar as primeiras estrelas é essencial para reconstruir a história da reionização, explicar a origem dos elementos pesados e interpretar as assinaturas químicas presentes em estrelas extremamente pobres em metais que observamos hoje. Uma questão em aberto é se turbulência – movimentos caóticos e vorticosos do gás – poderia ter surgido no interior dessas nuvens e, mais importante, se tal turbulência poderia influenciar a massa final das estrelas formadas. Estudos anteriores sugeriam que as primeiras nuvens eram relativamente calmas e que a fragmentação em várias estrelas seria mínima, levando à formação de astros muito massivos. Contudo, novos modelos mostram que a realidade pode ser bem mais agitada.

Uma equipe de pesquisadores do Instituto de Astronomia e Astrofísica da Academia Sínica (ASIAA) e da Universidade Nacional de Taiwan abordou essa questão com um arsenal computacional sem precedentes. Utilizando o código GIZMO, que combina hidrodinâmica sem malha e técnicas de refinamento de partículas, eles partiram de condições iniciais extraídas da simulação cosmológica IllustrisTNG e aumentaram a resolução original em cem mil vezes. Essa estratégia permitiu modelar a formação de um minihalo de massa ≈ 1,05 × 10⁷ M⊙ com riqueza de detalhes inédita. Os resultados indicam que turbulência supersônica se desenvolve naturalmente durante o colapso gravitacional, com número de Mach médio em torno de 5,2[1]. A turbulência agita o gás, estimula a fragmentação da nuvem em múltiplos aglomerados e gera núcleos densos de massa inferior, incluindo um núcleo gravitacionalmente ligado de apenas 8,07 M⊙[1]. Estas descobertas desafiam a visão tradicional de que a primeira geração de estrelas teria massas superiores a 100 M⊙, abrindo espaço para uma distribuição de massas mais moderada.

Desenvolvimento principal

Contexto científico e cosmológico

Pouco após o Big Bang, o Universo passou por uma rápida expansão inflacionária que amplificou pequenas flutuações quânticas na densidade. Essas flutuações semearam as estruturas que hoje observamos, formando uma teia cósmica de filamentos de matéria escura e gás. À medida que a matéria escura se aglomerava sob a força da gravidade, poços de potencial atraíam gás primordial – composto quase exclusivamente por hidrogénio e hélio. Essa matéria baryônica caiu nas chamadas minihalos, com massas entre 10⁵ e 10⁷ M⊙, aquecendo-se por compressão e, em seguida, resfriando-se via emissão de radiação molecular, principalmente pela molécula de hidrogénio (H₂). Quando o resfriamento era eficaz o suficiente para superar a pressão térmica, o gás colapsava para formar uma estrela.

Na física do meio interestelar atual, sabemos que turbulência desempenha papel crucial na formação estelar: movimenta o gás, gera estruturas filamentares e regula o equilíbrio entre gravidade e pressão. A energia para essa turbulência provém, em geral, de explosões de supernovas, vento de estrelas massivas ou jatos de núcleos ativos. Mas no Universo primordial, não havia fontes de energia tão potentes; a única força era a gravidade em ação num meio neutro e frio. Seria possível, mesmo assim, gerar movimentos caóticos? Algumas teorias sugeriam que a instabilidade gravitacional durante a fusão de pequenos halos podia desencadear turbulência gravitacional, mas as simulações anteriores careciam de resolução para seguir o processo em toda a extensão do halo.

Metodologia e inovação numérica

Para explorar essa possibilidade, Chen e colaboradores lançaram mão de uma combinação poderosa de simulações cosmológicas de grande escala e refinamento local. As condições iniciais foram obtidas a partir do IllustrisTNG 50 – uma simulação que acompanha a evolução do Universo em um volume de 50 cMpc, com resolução suficiente para identificar halos de matéria escura. Entre esses halos, a equipe escolheu um minihalo que, de acordo com a análise do catálogo SUBFIND, tinha massa total de 1,05 × 10⁷ M⊙. Em seguida, eles recortaram um cubo de 14,7 ckpc de lado ao redor desse halo, preservando o ambiente cósmico em que estava imerso.

O passo seguinte foi aumentar drasticamente a resolução. Na simulação IllustrisTNG original, cada partícula de matéria escura tinha massa de aproximadamente 4,56 × 10⁵ M⊙, e cada partícula de gás tinha massa de 8,38 × 10⁴ M⊙ – insuficiente para modelar detalhes internos do minihalo. Usando um procedimento de divisão de partículas (“particle splitting”), implementado no código GIZMO, os pesquisadores subdividiram cada partícula em múltiplas partículas menores até alcançar massas de 0,19 M⊙ para o gás e 80,88 M⊙ para a matéria escura. Esse refinamento foi aplicado progressivamente nos primeiros cinco milhões de anos de simulação, permitindo que a formação de estruturas densas e de pequenas escalas acontecesse sem perder o contexto cosmológico mais amplo.

O GIZMO é um código de hidrodinâmica sem malha (mesh‑free) baseado em GADGET‑2, no qual cada partícula representa um volume de fluido. A resolução adaptativa desse método é especialmente adequada para capturar choques e turbulência. Para tratar a química e o resfriamento do gás primordial, o código foi acoplado ao pacote GRACKLE, que resolve uma rede de 12 espécies (H, H⁺, He, He⁺, He²⁺, e moléculas como H₂, HD) e inclui processos de excitação, ionização, recombinação e emissão molecular. Assim, a simulação acompanha o acoplamento entre hidrodinâmica, química e gravidade de forma auto‑consistente. Importante destacar que, nesse modelo, não foram utilizados “sink particles” para formar estrelas; o objetivo era estudar o colapso do gás até a escala de formação de núcleos densos, mas não resolver o disco de acreção até a escala de unidade astronômica.

Evolução do minihalo e surgimento da turbulência

À medida que a simulação avançava do redshift z = 20,05 para z = 18,78 (aproximadamente 17,5 Myr de tempo físico), a nuvem primordial passou por um processo dramático de colapso e fragmentação. Inicialmente, aos 19,63 z, o gás estava disperso em vários filamentos que se dirigiam para a região central do minihalo. As linhas de corrente mostravam convergência do fluxo e indícios de movimentos rotacionais. Com o passar do tempo, o gás se acumulou rapidamente no centro, formando uma nuvem densa dentro do raio virial de cerca de 336 pc. A distribuição não era uniforme: estruturas alongadas e finas se estendiam por várias dezenas de parsec, enquanto zonas de maior densidade se encontravam em regiões onde o resfriamento molecular era mais eficiente.

Quando a nuvem atingiu escalas de alguns parsecs, a simulação revelou a emergência de turbulência supersônica. O número de Mach (a razão entre a velocidade do fluxo e a velocidade do som) das células de gás variava de valores sub-sônicos a números acima de 10, com um pico em torno de M ≈ 5,2[1]. Essa distribuição indicava que a maior parte do gás se movia a velocidades várias vezes superiores à velocidade do som naquelas condições. A energia cinética associada a esses movimentos seguia um espectro semelhante ao de Kolmogorov, típico de cascatas turbulentas: em grandes escalas (k ≈ 1 kpc⁻¹, correspondentes a 3 vezes o raio virial), a energia era injetada; em escalas intermediárias, a turbulência transferia energia de forma quase conservativa; e em escalas menores que alguns parsecs, a viscosidade numérica representava a dissipação do movimento em calor.

O impacto da turbulência ficou evidente na morfologia da nuvem. Em vez de um colapso monolítico em direção ao centro, o gás se fragmentou em clumps (aglomerados) distintos. Usando um algoritmo de identificação de subestruturas, os pesquisadores encontraram cinco clumps dentro do núcleo da nuvem; apenas um deles estava claramente ligado pela própria gravidade. Esse núcleo central tinha massa de 8,07 M⊙, raio de 0,03 pc e densidade de 3,9 × 10⁶ cm⁻³[1], superando em mais de quatro vezes a massa de Jeans local. Isso significa que ele estava prestes a colapsar para formar uma estrela. Os outros aglomerados, ainda não ligados, poderiam se tornar estrelas em fases posteriores, aumentando o número de astros formados a partir de uma única nuvem.

Comparação com estudos anteriores e implicações para a massa das estrelas

Antes deste trabalho, a visão dominante era que as primeiras estrelas eram muito massivas. Simulações que usavam técnicas de refinamento hierárquico e partículas de smoothed particle hydrodynamics chegavam a massas finais entre 50 e 300 M⊙, principalmente porque apenas a região central do halo era resolvida. Além disso, muitas delas empregavam partículas de escoamento (“sink particles”) para modelar o núcleo estelar, e isso, dependendo dos critérios de formação e de acúmulo de massa, pode levar à superestimativa das massas estelares. Também não se observava o desenvolvimento de turbulência, pois as escalas maiores do halo permaneciam sub-resolvidas.

Em contrapartida, ao acoplar a simulação cosmológica em grande escala à resolução local elevada, Chen e colegas demonstram que a turbulência surge naturalmente do próprio colapso gravitacional. Essa turbulência supersônica introduz instabilidades que favorecem a fragmentação e, consequentemente, reduzem a massa típica das estrelas formadas. A presença de um núcleo com apenas 8 M⊙ sugere que algumas estrelas de População III poderiam ter massas inferiores a 10 M⊙, algo que contrasta com modelos anteriores. Estudos recentes de discos protoestelares mostram que a fragmentação do disco também pode produzir múltiplas estrelas; no entanto, essa fragmentação ocorre em escalas sub-parsec, enquanto a turbulência descrita aqui se instala em escalas de dezenas de parsec, já fragmentando a nuvem antes mesmo da formação de um disco.

Outra questão importante é a chamada velocidade de streaming entre baryons e matéria escura. Pesquisadores como Tseliakhovich & Hirata mostraram que, devido às oscilações acústicas baryônicas, o gás primordial poderia ter uma velocidade supersonica em relação à matéria escura, dificultando o acoplamento. Esse fenômeno foi sugerido como um mecanismo para formar estrelas supermassivas, as quais seriam sementes de buracos negros primordiais. No entanto, no estudo de Chen et al., esse efeito não foi incluído; a origem da turbulência é atribuída exclusivamente à dinâmica do colapso gravitacional e ao resfriamento do gás. Portanto, a observação de turbulência supersônica sem streaming indica que a fragmentação e a formação de estrelas menos massivas podem ocorrer mesmo sem esse componente adicional de velocidade relativa.

Implicações científicas

As consequências dessas descobertas vão muito além do modelo de uma única nuvem. Em primeiro lugar, a existência de turbulência supersônica durante o colapso das primeiras nuvens suprime o colapso monolítico e favorece a formação de múltiplos núcleos. Isso implica que a função de massa inicial (IMF) da População III pode ter sido muito mais parecida com a das estrelas formadas hoje, com um espectro estendido entre 1 e 40 M⊙, em vez de concentrada em massas acima de 100 M⊙. Se for confirmada, essa distribuição altera profundamente nossa compreensão do papel das primeiras estrelas na evolução cósmica: estrelas menos massivas têm vidas mais longas, emitem menos radiação ionizante e produzem supernovas diferentes. Com massas entre 10 e 50 M⊙, elas poderiam explodir como supernovas de colapso do núcleo e deixar remanescentes de nêutrons ou buracos negros de pequena massa; com massas entre 50 e 80 M⊙, poderiam gerar hipernovas ou colapsar diretamente para buracos negros; apenas acima de 80 M⊙ surgiriam as supernovas por instabilidade de pares (PISNe), cuja assinatura química ainda não foi observada.

Além disso, a formação de múltiplas estrelas em um mesmo halo aumenta a probabilidade de dinâmica gravitacional complexa: interações de três corpos podem ejetar estrelas do halo, permitindo que algumas sobrevivam até a era atual. Esse cenário é compatível com a descoberta de estrelas extremamente pobres em metais na Via Láctea que parecem carregar as marcas de estrelas de População III de baixa massa. Modelos que incluem turbulência reproduzem melhor as abundâncias observadas nesses objetos, pois as supernovas de massa intermediária produzem padrões químicos distintos de ferro, carbono e elementos alfa.

Do ponto de vista computacional, o método de refinamento de partículas demonstra ser uma alternativa poderosa à refinamento adaptativo de malha (AMR). Como a turbulência se espalha por todo o volume e evolui rapidamente, a definição de critérios de refinamento em AMR torna‑se complicada. Ao refinar as partículas de forma uniforme e progressiva, a equipe conseguiu capturar a cascata turbulenta do nível de 100 pc até poucos centésimos de parsec, sem desperdiçar recursos computacionais em regiões desnecessárias. Essa estratégia pode ser aplicada a outros problemas, como a formação de galáxias anãs, nuvens moleculares atuais ou turbulência em discos protoplanetários.

Conclusão

O trabalho de Chen, Ho e Tung marca um avanço significativo na compreensão da formação estelar primordial. Ao integrar simulações cosmológicas de grande escala com técnicas de alto refinamento, os autores mostraram que a turbulência supersônica é um ingrediente natural do colapso de minihalos. Essa turbulência não apenas redistribui a energia e mistura o gás, mas também induz fragmentação em escalas de dezenas de parsec, produzindo núcleos densos de baixa massa. O achado de um núcleo com 8 M⊙, prestes a colapsar em uma estrela de População III, evidencia que estrelas menos massivas podem ter formado uma parte significativa da população primordial[1]. Isso reduz a contribuição de supernovas de instabilidade de pares e aumenta a importância de supernovas de colapso do núcleo e hipernovas para a química do universo jovem.

O estudo também destaca a necessidade de considerar ambientes em larga escala ao modelar a formação estelar. A turbulência desenvolvida pela assembleia do halo não pode ser capturada em simulações que se concentram apenas no centro do halo. Futuros trabalhos poderão incluir o efeito da velocidade de streaming, da formação de discos e da física de acreção em escalas sub-parsec para refinar ainda mais as estimativas da massa das estrelas primordiais. Observacionalmente, telescópios como o James Webb Space Telescope já começam a detectar galáxias e estrelas extremamente distantes; interpretações dessas observações precisarão incorporar os novos cenários propostos por estudos como este. A busca por estrelas de População III sobreviventes em nossa vizinhança galáctica também ganha motivação adicional.

Em suma, a turbulência não é apenas uma curiosidade teórica, mas um fator determinante que pode ter moldado o destino das primeiras estrelas. Ao revelar que o caos supersônico estava presente desde o início dos tempos, este estudo aproxima os astrônomos de uma narrativa mais realista sobre como as luzes pioneiras do cosmos acenderam-se e, talvez, continuam brilhando silenciosamente em torno de nós.

Sérgio Sacani

Formado em geofísica pelo IAG da USP, mestre em engenharia do petróleo pela UNICAMP e doutor em geociências pela UNICAMP. Sérgio está à frente do Space Today, o maior canal de notícias sobre astronomia do Brasil.

Veja todos os posts

Comente!

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.

Arquivo